Especialistas defendem adiamento da terceira etapa do desconfinamento

“É a grande oportunidade que temos para mostrar se aprendemos a lição”, defende Manuel Carmo Gomes. Óscar Felgueiras alerta para incerteza sobre a situação atual.

Na reunião do Infarmed não houve recomendações fechadas nem perguntas diretas aos peritos sobre se o confinamento deve ou não prosseguir para a terceira etapa e em que moldes. Mas nos bastidores cresce a apreensão com os sinais de aumento sustentado do índice de transmissão. Ao i, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes confirma que, embora não participe nas reuniões no Infarmed, apresentou antes do encontro à ministra da Saúde e à ministra do Estado e da Presidência a recomendação de que o país não avance para a terceira etapa de desconfinamento na próxima segunda-feira. Na semana passada, o especialista já se tinha mostrado preocupado com o calendário apertado para avaliação das etapas de reabertura e vê agora com maior preocupação a subida do RT e da incidência, dados que ainda não refletem a abertura das escolas para o 2.º e 3.º ciclo e restantes serviços, ressalva. Carmo Gomes alerta que com o RT de forma sustentada acima de 1, a epidemia está de novo com um “crescimento exponencial”, que é preciso travar antes de prosseguir. “O calendário do desconfinamento não pode estar escrito na pedra. Neste momento estamos num caminho que bifurca, e das duas uma: ou seguimos o caminho da prudência e o caminho que mostra que aprendemos as lições do passado ou prosseguimos dogmaticamente o calendário do desconfinamento como se estivesse tudo normal”, afirma o epidemiologista, propondo uma pausa para avaliar melhor a situação e reforçar medidas de controlo da epidemia como intensificação da testagem e rastreios precoce de contactos.

Para Óscar Felgueiras, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e um dos autores do plano de desconfinamento que serviu de base ao Governo, que ontem participou na reunião do Infarmed, a preocupação é não haver ainda dados que permitam avaliar com segurança a situação epidemiológica do país. “Por um princípio de prudência, o ideal seria aguardar mais uma semana para se ter uma melhor perceção”, afirma o matemático especialista em epidemiologia, que tem trabalhado na resposta à pandemia na Administração Regional de Saúde do Norte. “Até pode ser que não haja razão para alarme, mas se se confirmar um aumento da incidência, recuar é sempre mais difícil”, admite.

 

Os argumentos

A cautela dos especialistas aponta no mesmo sentido: não só um reforço das medidas de controlo da epidemia nos concelhos com maior risco, mas um travar geral do desconfinamento na próxima semana, não se avançando já com abertura das escolas para os ciclos mais velhos e demais atividades.

Na reunião do Infarmed foram apresentados os indicadores atuais, mas nenhum permite ainda aferir o impacto da segunda etapa do desconfinamento que arrancou na semana passada, com esplanadas de novo a funcionar e as escolas a receber os alunos do 1.º e 2.º ciclo e aumento da mobilidade no geral. Foi destacado o aumento da incidência abaixo dos 10 anos, agora a estabilizar, mas os dois especialistas ouvidos pelo i notam que isso reflete ainda o efeito da reabertura das escolas a partir de 15 de março e não a última semana e meia, em que a mesma questão se pode colocar nas crianças mais velhas. “O impacto da abertura a 15 de março viu-se no início de abril e agora começaremos a ver os primeiros impactos da segunda etapa no início da próxima semana”, diz Carmo Gomes. Os últimos cálculos do INSA apontam para um valor do RTde 1,05 a nível nacional na média dos últimos cinco dias e 1,09 no último dia da série, mas dizem respeito ao que era a situação epidemiológica do país a 8 de abril, já que o cálculo é feito com um desfasamento de sete dias para consolidar os dados. “Estamos com o RT acima de 1 há mais de uma semana, agora acima de 1,05, mas quando se calcula o RT a 8 de abril, estamos a falar da data de início de sintomas, pelo que reflete infeções adquiridas cinco dias antes na Páscoa”, explica Óscar Felgueiras. Carmo Gomes faz outra chamada de atenção: “O RT tem estado a subir 0,01 em média por dia. Quando se faz uma projeção de que com a tendência atual há uma duplicação de casos a 35 dias, amanhã já será a 31 dias e no dia seguinte a 28”, diz, explicando o significado da tabela apresentada por Baltazar Nunes, que aponta que todo o país esteja na linha dos 120 casos por 100 mil habitantes em 15 dias a um mês. Tempo que, mantendo a tendência, irá encurtar, tal como na semana passada a estimativa era uma duplicação de casos em dois meses. Se a tendência estiver estável, sem uma aceleração ou travão, o país poderá estar atualmente com um RT superior a 1,10 e quando reabrir na segunda-feira pode ser de 1,20. Mais uma vez, os cálculos só serão feitos mais tarde. “O que temos garantido é que estamos a abrir com um RT acima de 1 e uma incidência a aumentar”, diz Carmo Gomes. “A partir do momento em que o RT é maior do que 1, entramos em crescimento exponencial. O crescimento exponencial tem esta característica perigosa: no início, não nos apercebemos de que estamos em crescimento exponencial. Parece que está tudo sob controlo. Ainda hoje a senhora ministra disse que estávamos com uma incidência moderada, com 71,5 casos por 100 mil habitantes (a avaliação feira por André Peralta Santos da DGS na reunião). Parece moderado quando nos comparamos com novembro, para não falar de janeiro, mas há dias estávamos com 60 casos por 100 mil habitantes. Parece que é devagar e controlamos a situação mas a qualquer momento dispara e perdemos o controlo”, diz Carmo Gomes.

Óscar Felgueiras considera que é preciso monitorizar os indicadores e considera que é sobretudo difícil ter neste momento uma avaliação com segurança da situação. “Neste momento temos vários fatores a afetar a evolução recente e é isso que ainda não se consegue avaliar com segurança”, defende. “Tivemos duas semanas de aulas com a reabertura a 15 de março, sendo que na segunda começaram a aparecer mais casos em crianças. Depois temos uma semana de pausa letiva que culmina com o fim de semana da Páscoa, em que poderá haver um efeito de aumento de transmissibilidade, que ainda temos de confirmar. E depois temos esta reabertura do segundo e terceiro ciclo, de esplanadas e de outros serviços sobre os quais ainda não temos grandes dados, portanto não conseguimos fazer um avaliação com informação completa. E para além disso temos outro fator perturbador que é termos um padrão de testagem que não tem sido constante. Houve menos testes e depois um aumento de rastreios na semana passada, com uma testagem que foi quase o dobro da semana anterior, agora com um novo elemento que são os autotestes, pessoas que antes não faziam testes. Temos uma malha de deteção maior, mas não sabemos até que ponto é que isso está a contribuir para mais diagnósticos e incidência”, elenca.

Para Manuel Carmo Gomes, o aumento da testagem é o caminho para conseguir um maior controlo da epidemia. O epidemiologista defende que não se deve atribuir o aumento de casos a maior testagem, sublinhando que o RT está a subir há um mês, desde 12 de fevereiro. E mais rápido do que noutras fases da pandemia, o que admite que possa ser resultado da disseminação da nova variante. “A incidência não está a aumentar porque estamos a testar. Estamos a testar mais aleatoriamente, com menor positividade, pelo que não é isso que explica este aumento acentuado de transmissão”.