António Costa e o racismo

Os políticos têm sido uns ingénuos. Em vez de combaterem o politicamente correto, promovem-no. E amanhã serão eles as vítimas. 

António Costa, falando de racismo, disse há um mês que a situação na sociedade portuguesa não é tão grave quanto Mamadou Ba, de um lado, e André Ventura, do outro, a apresentam.

Caiu o Carmo e a Trindade!

Não por causa de André Ventura, de quem as pessoas já se habituaram a ouvir dizer mal, mas por causa de Mamadou Ba.

Que era incrível António Costa desvalorizar o racismo, que um primeiro-ministro não pode ignorar o racismo, que é preciso combater o racismo, etc. 

Ora, muitas das pessoas que atacaram Costa e defenderam Mamadou esqueceram-se de que o primeiro-ministro sabe do que fala, pois ele também não é… ‘branco’.

As nossas famílias conheciam-se e fomos algumas vezes jantar a casa deles, perto do Príncipe Real. O seu pai, Orlando da Costa, era um indiano escuro, magro, sempre a fumar cachimbo, militante do Partido Comunista. Poeta, ganhava a vida como publicitário. O mesmo acontecia com outros intelectuais de esquerda, como Alexandre O’Neil, cuja forma de terem um ordenado certo era exatamente trabalharem em agências de publicidade, beneficiando do seu talento para o manejo das palavras. 

Não deixava de ser curioso ver escritores comunistas e socialistas trabalharem em publicidade – um dos instrumentos mais agressivos e simbólicos do mundo capitalista. Mas, com raríssimas exceções, os escritores não conseguiam viver dos livros. Conseguia Ferreira de Castro, conseguiria Fernando Namora, mas poucos mais. Aliás, ainda hoje muito poucos autores conseguirão viver dos direitos de autor.

Orlando da Costa morreu com 76 anos, mas nessa altura já estava há muito separado da mulher, a jornalista Maria António Palla. Voltei a encontrá-la com alguma frequência ao longo da vida, não só em eventos profissionais mas porque continuou a dar-se com o meu pai e com um arquiteto com quem trabalhei muitos anos, Manuel Tainha. Às vezes, Maria Antónia passava pelo nosso atelier, na Rua Viriato, perto do Hotel Sheraton, para dar dois dedos de conversa. 

Era uma mulher muito viva, bonita, com uma voz melodiosa, discípula de Maria Lamas na defesa do feminismo. Foi uma das primeiras feministas que conheci – além da própria Maria Lamas, também amiga de meu pai, com quem convivi em Paris, no pequeno hotel no Quartier Latin em que ela vivia.

Vem tudo isto a propósito de António Costa e da sua referência a Mamadou Ba. Dizia eu que as pessoas que criticam Costa por desvalorizar o racismo se esquecem de que ele sabe muito bem do que fala porque também não é de ‘raça branca’. Conhece, portanto, o problema… na pele. 

Sabe o que sofreu ou não sofreu, as humilhações por que passou ou não passou, as discriminações de que foi vítima ou não foi vítima, as lutas pela igualdade de oportunidades que teve ou não teve de travar, etc.

Até sabe melhor do que Mamadou Ba – pois este nasceu no Senegal, não viveu sempre aqui, e António Costa nasceu, cresceu e fez-se homem em Portugal.

E o facto de as pessoas se ‘esquecerem’ de que António Costa não é de ‘raça branca’ é muito significativo – pois constitui a melhor prova de que o racismo em Portugal não é um problema grave. Um país europeu que tem um primeiro-ministro que, sendo de origem indiana, raramente é alvo de ataques ou ‘graçolas’ com base nesse facto (mesmo nas redes sociais, onde se dizem as coisas mais abjetas), não é um país racista. É um país tolerante, inclusivo e aberto – como aliás sempre foi. Lembremo-nos do slogan ‘nação plurirracial’ do tempo do Estado Novo.

Note-se que o próprio André Ventura, tantas vezes acusado de ser ‘racista’, nunca se assumiu como tal – e acredito que sinceramente não o seja. Aliás, também ele não será geneticamente ‘puro’… como milhões de portugueses. O que ele defende é que os ciganos devem ser obrigados a cumprir as leis, o que é uma ideia consensual. Mas nestes casos de racismo, feminismo, etc., dizer o óbvio às vezes já é crime. Se qualquer dia não podemos chamar ‘pai’ ao pai nem ‘mãe’ à mãe, nem chamar ‘mulher’ à mulher e ‘homem’ ao homem, o simples facto de pronunciar a palavra ‘cigano’ já é um atentado racista gravíssimo.

De qualquer forma, as declarações de António Costa sobre o racismo indiciam que ele começou a perceber que esta onda do politicamente correto, estas agendas do antirracismo, do feminismo, do sexismo, das acusações de ‘homofobia’, dos direitos LGBTI, etc., estão a destruir as sociedades por dentro – e, como a História prova, as civilizações desfazem-se interiormente antes de caírem às mãos dos inimigos externos. 
Neste sentido, os políticos têm sido uns ingénuos. Em vez de combaterem esses fenómenos dilacerantes das sociedades que governam, promovem-nos. 

E amanhã serão eles as vítimas. 

Mamadou já decretou que António Costa tem «falta de coragem política perante a ameaça racista e fascista». É preciso, portanto, vir outro que tenha essa coragem…