O ‘budista’ que vendeu os seus livros

Contou-me que tinha feito uma viagem que o transformara e os fizera ver as coisas de outra maneira. Depois disso, decidira vender os livros.

A qui há uns anos (penso que em 2004) frequentei um mestrado da Faculdade de Belas-Artes em que muitas das ‘aulas’ consistiam em palestras de agentes culturais, artistas, curadores, teóricos da arte, etc. Uma das mais aguardadas e concorridas foi a proferida por Thierry de Duve, um iminente filósofo e historiador da arte belga, filho de um visconde que venceu o prémio Nobel, e autor de um livro célebre intitulado Kant after Duchamp.

Uma tradução literal – ‘Kant depois de Duchamp’ – causaria alguma estranheza. Como poderia um filósofo do século XVIII vir depois de um artista do século XX? Talvez a intenção fosse mesmo essa, baralhar um pouco as contas. Mas também podemos traduzi-lo, e porventura com maior rigor, por ‘Kant segundo Duchamp’, uma vez que se trata de uma releitura da Crítica da Razão Pura à luz da prática artística revolucionária de Marcel Duchamp.

Durante alguns andei à procura desse livro. Porém, como acontece tantas vezes, quando eu estava mais determinado, o livro não estava disponível; e quando aparecia um exemplar, ou eu tinha perdido o entusiasmo ou não era a melhor altura para fazer essa despesa. Pois bem, recentemente a oportunidade, a vontade e a disponibilidade casaram-se.

Devo dizer que o vendedor tinha, além destes, disponíveis vários outros títulos sobre teoria e arte contemporânea que não é muito comum encontrar. Interroguei-me sobre quem poderia ser ele, e concluí que talvez se tratasse de uma pessoa deste meio com quem eu me tinha cruzado vagamente em tempos. Telefonei-lhe para combinarmos a entrega. O tom da voz conferia com o meu palpite.

Foi pois uma surpresa total quando se aproximou do meu carro um homem jovem de cabelo rapado e aspeto varonil – a pessoa que eu imaginava tinha um cabelo encaracolado muito característico. Concluída a transação, perguntei-lhe por que estava a vender os livros, pois percebia-se que tinham sido adquiridos com critério e talvez mesmo paixão.

Contou-me que reunira aquela biblioteca quando era estudante nas Belas-Artes, por influência de um professor carismático. Durante alguns anos fora artista – embora não tivesse deixado de o ser, já não expunha há bastante tempo.

Recentemente tinha feito uma viagem transformadora, em que passara algum tempo num retiro budista. «Não me tornei budista, mas passei a ver as coisas de outra maneira», confessou-me. Disse também que tinha alguns destes livros embalados «há dez ou quinze anos», o que o levou a concluir que não precisava deles, pelo que era melhor passá-los a alguém que lhes desse um bom uso.

No final desejou-me boas leituras, sugerindo que, depois disso, também eu poderia ‘libertá-los’ para seguirem o seu caminho, em vez de os reter. Disse-lhe que isso era pouco provável…

Chegado a casa, ao arrumar a nova aquisição, percebi duas coisas. Primeira, que a minha relação com os livros não é meramente utilitária, o que faz com que seja para mim impensável descartá-los depois de os ler. Segunda, que me custa a aceitar essa doutrina budista de que tudo é passageiro. Parece-me mesmo um pouco deprimente. E, nisto, ocorreu-me uma frase que sintetiza uma visão diferente:ninguém anda a construir uma casa para depois ir vender os tijolos.