Assim também eu? Não!

Curioso que a própria atriz reconhece que, quando visualizou o filme pela primeira vez, foi direita ao realizador e lhe pregou ‘uma bofetada’. A aceitação do direito da mulher a dar uma bofetada a um homem padece exatamente do mesmo mal pelo qual o realizador se achou no direito de enganar a atriz.

Sharon Stone protagonizou uma das cenas mais icónicas do cinema erótico americano, com o seu mundialmente famoso descruzar e cruzar de pernas durante o interrogatório conduzido por Michael Douglas em Instinto Fatal.

O filme é de 1992.

Na biografia que lançou agora, 29 anos depois, a atriz vem revelar que foi ‘enganada’ pelo realizador, Paul Verhoeven, que lhe terá garantido que a versão final não incluiria imagens em que se percebesse que estava sem roupa interior e revelasse a sua nudez. E que, por isso, quando o visualizou pela primeira vez e verificou que se expunha mais do que lhe tinham prometido, foi direta a Verhoeven e pregou-lhe uma bofetada.

Sharon Stone chegou a consultar advogados para evitar que o filme fosse comercializado com aquelas imagens, mas acabou por refletir e recuar, como explica no livro: «Decidi permitir essa cena no filme. Porquê? Porque era correto para o filme e para a personagem e porque, afinal, eu fiz».

Uma busca rápida no site da FNAC permite ficar a saber-se que a biografia da atriz  está esgotada, e indisponível em loja, mas pode encomendar-se ou, obviamente, comprar-se em versão digital.

E pode ler-se a pequena súmula de apresentação desta biografia da ‘atriz renascida’ que termina quase como se se tratasse de um manifesto: «The Beauty of Living Twice is a book for the wounded, and a book for the survivors; it’s a celebration of women’s strength and resilience, a reckoning, and a call to activism. It is proof that it’s never too late to raise your voice, and speak out» – «… nunca é tarde para levantar a voz e fazer-se ouvir’».

Também ela, Sharon Stone, passou assim a fazer parte do movimento ativista das mulheres vítimas de abusos sexuais, de assédio ou de violência.

Sharon Stone, com a sua carreira em declínio, como conta na biografia, tenta ‘renascer’ e voltar à ribalta. À custa deste ‘grito’ de revolta que ecoa pelo mundo.

Curioso que a própria atriz reconhece que, quando visualizou o filme pela primeira vez, foi direita ao realizador e lhe pregou ‘uma bofetada’.

A aceitação do direito da mulher a dar uma bofetada a um homem padece exatamente do mesmo mal pelo qual o realizador se achou no direito de enganar a atriz.

Era a cultura de então, machista, sexista.

Não era apenas no mundo do cinema – quantos filmes não reproduzem os excessos machistas e a reação das ofendidas com uma sonora bofetada? –, era em todas as áreas e setores da sociedade.

Recentemente, o mundo quase calou uma das suas melhores vozes de sempre – a do tenor Plácido Domingo –, também ele acusado de assediar sopranos que com ele contracenaram há umas décadas.

Algumas dizendo que consentiram e calaram os seus abusos com medo de prejudicarem as suas carreiras.

Pouco se importando que, visto agora à distância de umas décadas e de mudanças culturais, sociais e comportamentais profundas, a opinião pública não retire exatamente a conclusão contrária – sobretudo as menos dotadas em termos vocais.

Claro que há casos chocantes. Muitos, infelizmente, e é preciso denunciá-los, condená-los e combatê-los.

Mas não são os de há 30 anos nem de supostas virgens que se tornam púdicas com a passagem do tempo e com a mudança de mentalidades e de culturas.

Na Austrália, o caso de Brittany Higgins é verdadeiramente escabroso. Assessora de imprensa que trabalhava no grupo parlamentar do Partido Liberal – no poder –, foi violada por um colega no Parlamento no gabinete de Linda Reynolds (que viria a ser ministra da Defesa após as eleições gerais).

A jovem, de 24 anos, veio denunciar o caso porque, depois de despedido o agressor pelo Partido Liberal, passou a ser ela própria «um problema político» (nas suas palavras) e a perseguição foi tal que acabou por tomar a iniciativa de se demitir das suas funções e do cargo.

O caso atingiu tais proporções que Linda Reynolds chegou a chamá-la de «vaca mentirosa» em pleno Parlamento.

Reynolds foi obrigada a pedir desculpa a Higgins e acabou por sair do Governo por iniciativa do primeiro-ministro Scott Morrison, numa remodelação governamental há 15 dias.

A propósito deste caso, o Nascer do SOL tentou entrevistar Monica Lewinski, a estagiária da Casa Branca que se tornou célebre por ter mantido relações sexuais com Bill Clinton na Sala Oval.

Bill Clinton começou por negar as denúncias de Monica Lewinski, mas acabou por pedir desculpa em declaração pública aos norte-americanos, para evitar a aprovação do impeachment.

Contactado o gabinete de comunicação que trabalha com Lewinski, a resposta foi imediata e sem rodeios: com certeza que sim, Monica Lewinski estaria disponível para conversar com o nosso jornalista durante 20 minutos, por Zoom. Condição: o jornal pagar 2500 euros. Justificação: cobrir os «custos administrativos» e «uma pequena contribuição para uma obra de caridade».

Ora aí está, 20 minutos por 2500 euros.

Não sei o que faz Monica Lewinski para cobrar 2500 euros por 20 minutos de conversa. Mas todos sabemos o que fez.

E se ela é considerada uma das precursoras do movimento Me Too…

Assim também eu… NÃO!

Se o machismo é uma praga que todos temos de combater, o oportunismo de quem dele pretende tirar proveito não é menos censurável e é urgente também não o alimentarmos mais.