Dois anjos

Ivo Rosa até tinha um depoimento decisivo para sustentar esta ideia: o de Hélder Bataglia, quando disse que foi Ricardo Salgado quem o mandou depositar dinheiro na conta de Santos Silva sem lhe dizer do que se tratava. Ricardo Salgado quisera, pois, fazer chegar dinheiro às mãos de Sócrates através de Santos Silva.

Um agente da polícia ouve um tiro.
Corre na direção de onde veio o som, vê um corpo caído no chão e um homem a fugir com uma pistola na mão.

Vai atrás do homem, que, quando percebe que vai ser apanhado, deita a pistola fora.

O polícia consegue agarrá-lo, algema-o e leva-o à presença do juiz. Este pergunta ao polícia:

– Apanhou a pistola?

Responde o agente:

– Não. Se tivesse ido à procura da pistola, deixava o homem fugir…

– Então, como é que sabe que o tiro saiu dessa pistola?

– Bem, ouvi um tiro, vi um corpo caído e este homem a fugir com uma pistola na mão…

– Mas se não recuperou a pistola, não sabe se foi ela que disparou; e, se não sabe se foi ela que disparou, não pode dizer que o agressor foi este homem…

E dito isto mandou soltar o indivíduo.

O juiz desta história, enredando-se em formalismos e desprezando as evidências, podia ser Ivo Rosa.

 

Penso ser relativamente fácil desmontar a argumentação do juiz. Peço apenas ao leitor um pouco de paciência e atenção.

No acórdão, Ivo Rosa admite que José Sócrates foi corrompido por Carlos Santos Silva, que lhe passou para as mãos 1,7 milhões de euros. O juiz não aceitou, portanto, a explicação avançada por Sócrates de que se tratava de «um empréstimo». E explicou porquê: as conversas entre os dois eram em linguagem cifrada, as quantias eram entregues em dinheiro vivo e não através de transferências bancárias como seria normal, etc.

Mas, depois de chegar a esta conclusão, Ivo Rosa parou. Santos Silva corrompeu Sócrates, este deixou-se corromper (‘vendendo’ o cargo de primeiro-ministro), mas daqui o juiz não inferiu mais nada.

Confesso que, quando analisei o processo, concluí que a única escapatória para Sócrates seria o juiz aceitar a sua tese do ‘empréstimo’.

Seria o juiz dizer que não existia nenhuma prova de que não fossem empréstimos, até porque Santos Silva e Sócrates eram amigos.

Mas, se rejeitasse a explicação de Sócrates, tudo o resto seria fácil.

Se aceitasse a ideia de que o dinheiro de Santos Silva era para corromper Sócrates, o juiz teria obrigatoriamente de dar o passo seguinte: corromper para benefício de quem?

Ora, as contas bancárias de Carlos Santos Silva davam a isto uma resposta cabal: nelas figuravam depósitos de muitos milhões de euros sem razão plausível. E bastaria começar a ler os nomes dos depositantes – Joaquim Barroca, Hélder Bataglia, etc. – para começarem a acender-se na sua cabeça luzes vermelhas.

Sabendo-se a posição de Barroca no Grupo Lena, e a de Bataglia no Grupo Espírito Santo, era fatal concluir que estes grupos teriam tentado corromper José Sócrates através de depósitos em nome de Carlos Santos Silva.

E Ivo Rosa até tinha um depoimento decisivo para sustentar esta ideia: o de Hélder Bataglia, quando disse que foi Ricardo Salgado quem o mandou depositar dinheiro na conta de Santos Silva sem lhe dizer do que se tratava.

Ricardo Salgado quisera, pois, fazer chegar dinheiro às mãos de Sócrates através de Santos Silva.

Mas, exatamente para destruir esta conexão, Ivo Rosa empenhou-se a fundo em descredibilizar o depoimento de Bataglia. Que ele tinha feito antes um testemunho contraditório com este, que podia beneficiar com esta versão, que não tinha deposto sob juramento…

Só que, enquanto duvidava de Bataglia, o juiz considerava credíveis os depoimentos de Carlos Santos Ferreira, Teixeira dos Santos, Paulo Campos, Paulo Pinto de Sousa, Mário Lino, Vítor Escária, Guilherme Dray, etc. – tudo gente do círculo socrático! Parece mentira, mas foi mesmo assim. Ivo Rosa chegou ao ponto de dizer esta coisa extraordinária: que o facto de uma pessoa trabalhar sob as ordens diretas de Sócrates, até mesmo ser o seu chefe de gabinete, não a impedia de dizer a verdade. Mas este homem vive em que planeta? E porventura não conhece Sócrates, o ‘animal feroz’? Não sabe as pressões que ele fez sobre a Justiça? Bastaria isso para imaginar as pressões a que sujeitava os seus colaboradores. Alguém acredita que estariam livres para o incriminar, mesmo depois de deixarem de trabalhar com ele? Até porque muitos continuam a ser seus amigos…

Valha-nos Deus!

O juiz desvalorizou uns depoimentos e valorizou outros consoante eles iam ou não ao encontro da conclusão a que ele queria chegar. Essa é que é a verdade.

Ivo Rosa afirmou que Carlos Santos Silva quis corromper José Sócrates, e que este se deixou corromper – mas ficou-se por aqui.

Não ligou às contas bancárias de Carlos Santos Silva, não quis saber quem lá depositou dinheiro, nem que interesse poderiam ter esses depositantes numa intervenção favorável do primeiro-ministro.

Por exemplo: foi Sócrates quem autorizou a venda da Vivo (que permitiu ao BES um grande encaixe financeiro, numa altura em que precisava desesperadamente de dinheiro). E foi Sócrates quem impôs que, com parte desse dinheiro, se comprasse a Oi, que valia muito menos do que custou e permitiu distribuir dinheiro a muita gente.

Isto são factos. Ivo Rosa ignorou-os porquê?

Durante a longa leitura do acórdão, invocou repetidamente «as regras da experiência e da lógica».

Ora, tendo Sócrates intervindo diretamente em decisões que envolveram o Grupo Espírito Santo; havendo um depósito de 12 milhões de euros feito por um alto quadro do Grupo Espírito Santo na conta de Carlos Santos Silva; sendo Carlos Santos Silva ‘corruptor’ de José Sócrates, não levariam «as regras da experiência e da lógica» a concluir que o Grupo Espírito Santo, através de Santos Silva, corrompeu (ou tentou corromper) José Sócrates?

Que parte desta história é que o juiz não percebeu?

E o mesmo vale para o Grupo Lena.

Houve quem dissesse que a ‘tese’ de Ivo Rosa foi bem construída.

Acho exatamente o contrário.

Nalguns pontos chegou a ser infantil.

Para negar uma afirmação do Ministério Público de que teria havido um encontro entre Lula e Sócrates, o juiz descobriu que só tinham estado juntos numa determinada cimeira; e nessa cimeira não tinham falado a sós. Como sabe? Se se encontrassem a sós para fazer uma combinação ‘suspeita’ fá-lo-iam sob os olhares dos jornalistas, registando o encontro na agenda? Ou só se encontrariam se tivessem a absoluta certeza de que o encontro ficaria secreto? Será preciso muita inteligência para perceber isto?

Noutra passagem do acórdão, Ivo Rosa chegou a pronunciar uma frase memorável: «Os arguidos Ricardo Salgado e José Sócrates negaram essa factualidade» (uma reunião qualquer). Mas Salgado e Sócrates haviam de confirmar uma ‘factualidade’ que os incriminava? E, já agora, eles falavam sob juramento, como invocou Rosa para não acreditar em Bataglia?

A ingenuidade da argumentação de Ivo Rosa chegou a ser confrangedora.

E que dizer da sua hilariante tirada de que Sócrates não podia pagar impostos de dinheiro obtido por meios ilegais? É como se, depois de apanharem os assaltantes de um banco, dissessem: como é dinheiro de um roubo não é sujeito a impostos, mas como o roubo já prescreveu não têm de cumprir pena. O juiz não percebeu que, ao dizer o que disse, brincava com a Justiça de um modo chocante?

Ivo Rosa não quis fazer justiça. Nem quis inocentar Sócrates nem os outros arguidos. O seu objetivo era mais mesquinho: quis desacreditar o Ministério Público e o juiz Carlos Alexandre. Era este o seu objetivo de início e o seu trabalho foi arranjar argumentos para o fazer. Argumentos que em muitos casos, por serem toscos ou ingénuos ou ilógicos, acabaram por dar mais força àquilo que pretendiam negar.

Conhecendo eu o processo, posso garantir o seguinte: a acusação estava muito mais bem feita, tinha muito mais lógica, apresentava muito mais solidez do que o acórdão de Ivo Rosa.

Ao acabar de o ouvir, pensei: este homem fez-se de parvo, quis fazer-nos de parvos ou é mesmo parvo?

Tendo em conta a sua longa exposição, poder-se-ia dizer que o mundo está cheio de gente má e só existem dois ‘anjos’: ele próprio, que inocentou um inocente, e Sócrates, injustamente acusado pelo Ministério Público.

Falando a sério, julgo que, perante a fragilidade do acórdão, será fácil à Relação validar no essencial a acusação do Ministério Público, que se empenhou seriamente em descobrir a verdade – ao contrário de Ivo Rosa, que, como diria Eça, tentou esconder «a nudez forte da verdade» sob o «manto diáfano da ‘Justiça’».

Não queria terminar sem uma nota de outro tipo.

Será normal, num país em que as pessoas vivem com dificuldades, um ex-primeiro-ministro viver à larga, estoirar milhões, e ainda por cima insultar a Justiça?

Será normal um ex-primeiro-ministro gastar dinheiro à tripa-forra, ter uma casa sumptuária em Paris, viajar em primeira classe, frequentar os melhores restaurantes, fazer férias em hotéis de luxo, tudo isto sem ter meios de fortuna, à custa de dinheiros que contra toda a lógica dizia serem emprestados?

Independentemente de tudo o mais, não seria isto ofensivo para os portugueses?

E será aceitável que, no fim, a Justiça venha dizer: todo esse dinheiro que permitiu a José Sócrates fazer uma vida de nababo foi produto da corrupção quando era primeiro-ministro, mas o crime já prescreveu.

Isto pode caber na lógica de um juiz – mas não cabe na lógica dos cidadãos honestos.

Cuidado: a Justiça não é uma brincadeira e Ivo Rosa brincou com ela à frente dos nossos olhos.

P.S. – João Miguel Tavares escreveu que o acórdão do Tribunal Constitucional que permitiu a Ivo Rosa dizer que os casos de corrupção estão prescritos foi produzido depois de a acusação estar fechada e Ivo Rosa já ter há 10 dias o processo nas mãos. Se isto é verdade, é gravíssimo. Dá ideia de um acórdão feito à medida para ilibar José Sócrates. E o relator do acórdão terá sido um juiz indicado pelo PS e que foi deputado do PS, que entretanto já deixou o Tribunal Constitucional. Repito: se tudo isto for verdade, alguém de tem de fazer alguma coisa.