‘Mercadejar’ em terra de cegos…

Nove meses depois de ter terminado o debate instrutório da Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa ‘deu à luz’ um polémico despacho de quase 7 mil páginas, no qual ‘manda em paz’ a maioria dos arguidos e isenta o principal de quase todos os crimes de que estava acusado.

Sem surpresa, o Ministério Público decidiu recorrer para o Tribunal da Relação com o qual Ivo Rosa se tem dado mal. Sem surpresa, também, o PS converteu o embaraço num medido silêncio. Para António Costa o que disse há seis anos sobre o assunto continua válido e nada tem de acrescentar. Uma «hipocrisia» e «falta de coragem» para Rui Rio. Afinal, uma esquiva útil.

Ora nada disto bate certo.

Para quem não pertence à ‘alta roda’ da legião de juristas que desfilaram pelas televisões, sobram muitas dúvidas e questões em aberto.

A primeira será, decerto, descodificar a animosidade de um juiz face ao Ministério Público, destratando-o como se fosse composto por um bando de incompetentes, distraídos em prazos e acórdãos, e apostados, com criatividade e fantasia, em acusar gente impoluta e de boa fé.

Embora seja conhecido o histórico deste magistrado – com o pouco invejável palmarés de ter sido desautorizado pela Relação por mais de uma dezena de vezes – a sua acrimónia nunca fora tão longe e a validação das teses das defesas tão explícita.

A segunda questão entronca-se na conspícua reação defensiva de António Costa ao ser abordado sobre o veredicto.

Apesar de parte substancial da acusação ter ficado ‘em banho Maria’, está em causa um ex-primeiro-ministro socialista com quem Costa colaborou de perto, durante vários anos, sem nunca se ter apercebido dos fumos de corrupção, que, ao menos, uma vez, Ivo Rosa admitiu como «um mercadejar com o cargo», embora dando o crime como prescrito. Ou seja, ‘mercadejar’ em terra de cegos ainda rende…

Uma vergonha, inédita em democracia, que tornou ainda mais patético o comportamento de Sócrates e o arraial mediático, ao qual deliberadamente se expôs, como se nada de pecaminoso tivesse feito.

O silêncio de Costa tornou-se ainda mais insólito, por envolver acusações graves a um ex-primeiro-ministro socialista, além de um ‘ex-todo poderoso’ banqueiro, que chegou a ser visto como o ‘dono disto tudo’, antes do BES colapsar, arrastando na queda milhares de pequenos investidores e o nome da família Espírito Santo.

Tanto a Operação Marquês como a falência do BES são processos que atingem o coração do regime e testam o edifício judicial, nos seus labirintos e alçapões, por onde escapam os poderosos, defendidos por advogados de elite, que sabem mover-se nas malhas da lei, e aproveitar as suas fragilidades ou o ‘garantismo’ da arquitetura do sistema.

Depois, a lentidão processual exasperante, que bloqueia e desfigura a aplicação da Justiça, permite ainda que um acusado de suborno em cargo público se dê ao luxo de passear-se como se não fosse nada com ele, com um sentimento de absoluta impunidade.

A terceira questão, é perceber porque continua afastado do nosso ordenamento jurídico o crime de enriquecimento ilícito (sem que o PS e o PSD se empenhem em corrigir a versão chumbada no Constitucional em 2015) que, se já existisse, com essa ou outra moldura penal, deixaria Sócrates e outros arguidos em ‘maus lençóis’.

A quarta questão diz respeito ao efeito arrasador que o desfecho do processo, em sede de decisão instrutória, terá produzido no comum dos portugueses, minando a sua confiança na Justiça.

Afinal, a criminalização do suborno de um político ou da apropriação ilícita de bens, depende do perfil do juiz, dos prazos decorridos e de bons advogados, que saibam gerir as incongruências do sistema, enxameadas de doutos pareceres e de discutíveis acórdãos.

Dito isto, e não obstante o recolhimento piedoso do PS perante o processo (cujo desfecho instrutório mais se assemelhou a um julgamento, sem coletivo nem contraditório, com a glória de um juiz a debitar, em direto, nas televisões, uma ‘homilia’ monocórdica de quase três horas, uma singularidade terceiro-mundista), convenhamos que, embora Sócrates tenha saído formalmente do partido, o partido não se livrou dele.

Para tentar salvar a ‘honra do convento’, Fernando Medina aproveitou o seu espaço na TVI para verberar o comportamento de Sócrates que «corrói o funcionamento da nossa vida democrática». Estranhamente, foi uma voz quase isolada na família socialista.

Em novo livro, Sócrates queixa-se daquilo em que o PS tem sido exímio – removê-lo da história. E diz-se traído. Uma ironia.

Muito antes do veredicto do juiz Ivo Rosa ter poupado Sócrates à maioria dos crimes ‘prescritos’, o PS percebeu que precisava de libertar-se da sua ‘tutela’.

Fê-lo com uma continuada ‘cerca sanitária’. Mas fê-lo, igualmente, ao recuperar vários dos ‘discípulos’ obedientes de Sócrates, desde Pedro Silva Pereira, hoje a bom recato como eurodeputado, a Vieira da Silva, que voltou a ser ministro enquanto quis, com direito a ‘nomear’ herdeira…

Ou seja: para não ser incomodado pelos ‘socráticos’ mais influentes, Costa reabilitou-os, deu-lhes visibilidade e partilhou com eles poder.

Afastados durante a vigência do Governo de Passos Coelho, os ‘socráticos’ estão hoje novamente instalados no aparelho de Estado, sem nunca se terem distanciado do ‘patrono’, nem das suas diatribes.

Por isso, a ameaça de Sócrates de voltar à política como se tivesse a ‘folha limpa’, mesmo que seja uma hipótese remota não deixará o PS tranquilo, até por conhecer os ‘amigos’ do ex-primeiro-ministro plantados em lugares estratégicos, desde a administração publica à comunicação social.

Sócrates sonha, como Lula da Silva no Brasil – com quem se compara –, em candidatar-se à Presidência. No prefácio ao seu novo livro, e não por acaso, a ex-presidente Dilma Rouseff defende que «os paralelos entre a situação vivida pelo veterano líder do Partido Socialista (…) e a do ex-Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva salta aos olhos».

De facto, ‘salta aos olhos’, mas não pelas razões bondosas invocadas por Dilma – uma invenção de Lula –, naquilo que considera ser uma «trama digna de um thriller político».

Tanto o juiz Sérgio Moro como o juiz Ivo Rosa não são almas gémeas. Mas tiveram nas mãos o destino de dois políticos polémicos, aos quais não faltam afinidades. Até na admiração que ambos nutrem pelo regime venezuelano, que transformou a democracia numa farsa.