A justiça cega de Honest John

1877 regista o único empate entre Oxford e Cambridge. O juiz era um velho vesgo e bêbado mas a sua decisão foi acatada

Oxford contra Cambridge. Os ingleses, essencialmente práticos, como os definia a figura ridícula do ministro da Educação ao Carlos, em Os Maias, chamam-lhe simplesmente The Race: A Corrida. Para que não haja lugar a discriminações, sejam elas de que género forem, os alunos da Universidade de Oxford são conhecidos por Dark Blues enquanto os de Cambridge têm o epíteto de Light Blues. E, assim sendo, todos os anos, numa total paz de espírito, os dois barcos com oito remadores e um comandante que impõe o ritmo das remadas, num pedaço do rio Tamisa com 6,8 quilómetros, a Oeste de Londres, entre Putney e Mortlake, mediram-se em forças desde o longínquo ano de 1829.

Claro que nestas coisas de gente fina também rebentam, de vez em quando, tranquibérnias próprias de plebeus. Logo em 1877, os leais adversários desentenderam-se por via de um muito pouco crível empate: 24 minutos e oito segundos exatos para ambas as equipas não parecia minimamente aceitável até toda a gente ficar a saber que o juiz da competição era um senhor de mais de 70 anos cego de um olho e que revelava inquietantes sinais de estar embriagado. Caíra um temporal dos diabos, os espetadores mal conseguiam ver a prova de jeito através das cordas de chuva que tombavam do céu, muitos ficaram com a sensação de que Oxford chegara pelo menos com um palmo de avanço mas, desportivamente, acabara por aceitar a decisão final do bebedolas. E, assim sendo, a história regista um único empate além das 85 vitórias para Cambridge e 80 para Oxford. O vesgo chamava-se John Phelps e era conhecido pela alcunha de Honest John, vá lá saber-se se por sinceridade ou por ironia. E, por causa dele e da sua decisão controversa, no ano que se seguiu apareceram aqueles postes, colocados frente a frente de cada lado do rio, para que o árbitro pudesse fazer ponto de mira com o nariz.

Em 1912 o assunto teve menos piada. O juiz, antigo estudante de Cambridge e remador em três corridas, Frederick I. Pitman, teve outra decisão muito discutida. Mais uma vez, os ingleses recorreram à sua habitual contenção. Resultado final: «No Race». Como se nada tivesse acontecido. Era a 69.ª edição da prova e nenhum dos contendores ficou convencido.

O facto que levou à decisão de Pitman não teve, desta feita, nada que ver com excessos alcoólicos. Oxford tinha tomado a dianteira mas o barco começou a meter água por todos os lados e tiveram de aportar junto à ponte de Hammersmith para despejá-la à custa de baldes. De pouco lhes serviu. Quando chegaram á conclusão de que era possível regressar ao rio já Cambridge se tinha afundado um pouco mais adiante, à frente do Harrods Depository. No dia seguinte tudo correu pelo melhor na repetição da corrida, Sobretudo para Oxford que venceu pela diferença de seis comprimentos, sendo que o comprimento (lenght) é uma daquelas formas de medida tão insuportavelmente britânica que nos faz suspirar pela geometria euclidiana e pelos postulados de Euclides de Alexandria.

Se houve um tipo na História com capacidade para irritar um inglês até à medula, esse foi sem dúvida Adolf Hitler. Já não bastavam as sirenes de aviso dos bombardeamentos, que eram de provocar apoplexias, como o Governo de Sua Majestade decidiu que era sensato interromper A_Corrida entre os anos de 1940 e 1945 com a justificação de que não eram aconselháveis as multidões que se acumulavam nas margens do Tamisa, tal como o fizera entre 1915 e 1919 e o fez no ano passado, devido à maldita pandemia. Pois, em 1944, Oxford e Cambridge estiveram-se nas tintas para o Palácio de Buckingham e resolveram combater num local mais tranquilo, um braço de rio entre Ely e Littleport conhecido por River Great House. Vitória para Oxford com laivos de clandestinidade e de irreverência mas muito longe do terrível motim que marcou a corrida de 1987.

Um ano antes, Oxford perdera pela primeira vez ao fim de dez vitórias consecutivas. O treinador americano da equipa, Chris Clark, soltou inesperadamente uma frase profundamente incomodativa: «Next year we’re gonna kick Cambridge’s ass. Even if I have to go home and bring the whole US squad with me». Se em 1829 os americanos eram dispensáveis, Clark, com a sua fanfarronada, arranjou mais sarilhos em Oxford do que Hitler nos anos 40. Num instante, a equipa ficou dividida entre os estudantes americanos e os britânicos que quiseram reclamar os seus lugares a bordo. O presidente do clube naval da universidade, Donald McDonald, que tinha a última palavra em relação aos selecionados, abriu a temporada de caça a Clark e teve de se haver com os americanos amotinados. A bronca valeu um livro – True Blue: The Oxford Boat Race Mutiny, de Patrick Robinson, e um filme posterior. Apesar da confusão, Oxford bateu Cambridge por quatro comprimentos. Contra a corrente. Porque The_Race disputa-se sempre contra a corrente.

afonso.melo@newsplex.pt