Um elefante numa loja de porcelana

Estas boas almas ainda achavam que Sócrates um dia poderia ser inocentado e voltar ao PS. Ainda sonhavam com um abraço de reconciliação entre José Sócrates e António Costa. Ora, ao atacar Costa como atacou, José Sócrates alienou o apoio dessas pessoas.

Muita gente, fora e dentro do PS, tem dito que o silêncio de António Costa acerca de José Sócrates é «ensurdecedor».

Que o partido tem de fazer uma «autocrítica».

Que, depois do ataque de Sócrates à direção do PS, esta não pode ficar calada.

Recorde-se que Sócrates, numa entrevista à TVI, classificou como «uma canalhice» declarações feitas sobre ele por Fernando Medina, mas adiantou que não lhe interessa responder a figuras menores mas sim saber quem foi o «mandante». Quem tinha mandado Medina dizer aquilo. E afirmou preto no branco que fora «a direção do PS», ou seja, António Costa.

Perante isto, Costa devia falar ou ficar calado?

Fez muito bem em ficar calado.

Inversamente, ao dizer o que disse, José Sócrates deu um enorme tiro no pé.

Sócrates não teve nenhuma vantagem em atacar António Costa, bem pelo contrário.

Porquê?

Porque, até esse instante, muitos socialistas tinham o coração dividido.

Embora respeitando o ‘cordão sanitário’ imposto por António Costa à volta de Sócrates, não tinham abandonado o ex-primeiro-ministro à sua sorte e acreditavam na sua inocência.

A prova disso é que, logo após a leitura do acórdão por Ivo Rosa, começou a circular entre os militantes e simpatizantes do PS um artigo de Garcia Pereira atacando a acusação do Ministério Público.

Estas boas almas ainda achavam que Sócrates um dia poderia ser inocentado e voltar ao PS.

Ainda sonhavam com um abraço de reconciliação entre José Sócrates e António Costa.

Ora, ao atacar Costa como atacou, José Sócrates alienou o apoio dessas pessoas.

Se até aí elas estavam divididas, a partir daí voltaram-se decididamente para Costa e fizeram por esquecer Sócrates.

No instante em que disse o que disse, José Sócrates ficou muito mais sozinho.

Para percebermos bem toda a história, convém recordar o que aconteceu no Partido Socialista depois de Sócrates sair da liderança.

António José Seguro, que lhe sucedeu no cargo, esforçou-se por fazer um corte com o passado, afastou os socráticos da direção e dos órgãos de poder, e iniciou uma ‘dessocratização’ do partido.

A sua estratégia consistia em limpar o PS e levá-lo a renascer das cinzas sem esqueletos no armário.

Ora, foi contra essa ideia que apareceu António Costa.

Antes mesmo de se candidatar à liderança, Costa fez várias declarações dizendo que António José Seguro «não conseguia unir a família socialista».

E quem era a figura que aparecia sempre atrás dele no ecrã da TV quando fazia esta afirmação? O ex-ministro Vieira da Silva…

E quem era o outro ex-ministro que regularmente também surgia ao seu lado? Pedro Silva Pereira…

«Unir a família socialista» significava, pois, promover a recuperação política dos socráticos e levá-los de regresso à primeira linha.

E isso ver-se-á logo a seguir à subida de António Costa à liderança, quando na sua direção surgem muitos nomes ligados a José Sócrates – que depois também aparecerão nas listas eleitorais e no Governo.

Costa subiu à liderança do PS às costas de muitos amigos de Sócrates e tinha de pagar essa dívida.

Só faltava mesmo encontrar um lugar para o próprio Sócrates.

Acontece que, entretanto, José Sócrates é preso.

E aí, António Costa toma a decisão drástica de se divorciar dele.

A sua frase «à Justiça o que é da Justiça e à política o que é da política», significando que o PS não vai apoiar Sócrates contra a acusação do Ministério Público, é um corte com tudo o que vinha acontecendo até aí.

António Costa esquecia o apoio que os socráticos lhe tinham dado e mesmo a lealdade que deveria a Sócrates por ter sido o seu número dois.

Implacável, Costa fez o que racionalmente deveria fazer para defender o PS e se defender a si próprio: afastar-se de Sócrates.

Ora, na entrevista à TVI, José Sócrates fez exatamente o contrário do que deveria ter feito para não perder o apoio de muitos socialistas: atacar António Costa.

Julgo que Sócrates já não tem condições para voltar à política.

Mas, se tivesse, o seu principal objetivo seria destruir António Costa.

Tentaria voltar a candidatar-se à liderança do PS, para lhe roubar o cargo e o humilhar.

Mesmo assim, estando politicamente muito ferido, Sócrates vai fazer a vida negra àquele que, no seu entender, foi quem mais o traiu.

Não tenhamos dúvidas sobre isso: José Sócrates vai ser um elefante na loja de porcelana em que o Partido Socialista se tornou.