As teias da Justiça…

É natural que o cidadão comum se interrogue sobre os mecanismos da Justiça, que funcionam a diferentes velocidades,conforme as posses e o estatuto político e social dos protagonistas

Numa entrevista recente a um jornal português de Macau, Álvaro Laborinho Lúcio exprimiu uma visão desencantada sobre o estado da Justiça. Acha que «deveríamos estar inquietos com o que está a acontecer», e confessa ter «algumas dúvidas de que hoje o Estado de Direito esteja saudável».

Di-lo com a autoridade e a experiência de ter sido ministro da Justiça na década de 90, além de juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e membro do Conselho Superior da Magistratura. Não é coisa pouca. 
A corrupção latente em Portugal, de que a Operação Marquês se tornou um paradigma – por envolver um ex-primeiro ministro e um ex-banqueiro, cujas relações ganharam contornos singulares –, tem sido um teste à Justiça, fértil em polémicas extremadas.

Entre a autovitimização obsessiva de José Sócrates e toda a turbulência mediática que o tem acompanhado, até ao novelo frio e cerebral de Ricardo Salgado, as malhas da lei têm sofrido tratos de polé. 
A lentidão dos processos, designadamente, na área da corrupção e dos chamados ‘crimes de colarinho branco’ – quer na investigação, quer nas fases posteriores até chegarem a julgamento, quando este existe –, concede aos arguidos tempo de sobra para sofisticarem as suas narrativas, desiludindo quem confiava num desfecho clarificador sem mais adiamentos. 

Se juntarmos a estes megaprocessos vários outros com eco no espaço público, colecionando suspeitos com nome na praça – agora no urbanismo do Município de Lisboa, algo que andava no ar –, é de presumir que, tão cedo, não cheguem à barra dos tribunais, se não ficarem arquivados pelo caminho.

Perante este estado de coisas, é natural que o cidadão comum se interrogue sobre os mecanismos da Justiça, que funcionam a diferentes velocidades, conforme as posses e o estatuto político e social dos protagonistas, somado à alegada complexidade dos processos. 

Da mesma forma que é natural, também, que o cidadão comum não perceba as evasivas de António Costa, enquanto líder do PS e primeiro-ministro, perante os crimes de José Sócrates, confirmados pelo juiz instrutor, entre os muitos de que estava acusado e que Ivo Rosa considerou prescritos. 

Por muito que custe a Costa, é um caso que não pode ficar arrumado na gaveta socialista, com o estafado bordão ‘à Justiça o que é da Justiça’.

Em janeiro de 2018, Marcelo Rebelo de Sousa recebeu um documento promissor, intitulado ‘Acordos para o Sistema de Justiça’, com cerca de 80 medidas que, supostamente, refletiam a plataforma a que tinham chegado juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, e outros operadores judiciais.

O documento excluía a delação premiada e o enriquecimento ilícito, facto que gerou desconforto no Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que interpretou as medidas aprovadas como «manifestamente insuficientes» para um combate eficaz à criminalidade económica e financeira.

Por essa altura, Marcelo considerava o acordo «exemplar porque é original», e interrogava-se sobre «será tão difícil assim que os partidos cheguem a consensos?».

Provou-se que sim. Tanto que, logo em março do ano seguinte, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, foi perentório ao afirmar que «apesar das esperanças do Presidente da República, o pacto para a Justiça terá abortado». 

Não se enganou. Três anos volvidos, o pacto é praticamente letra morta. Apesar disso, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, ao proceder a um balanço de legislatura, mostrou-se contente consigo própria, sem se descortinar porquê. 

O pacto não vingou, salvo em alguns aspetos marginais, nem tão-pouco o ‘Compromisso para a Justiça’ do PSD, que teve a mesma sorte. 

Marcelo conformou-se e reconheceu forçado, no debate dos candidatos a Belém, que «realmente, o pacto foi muito pouco aplicado». Uma evidência. 

Recuperou o tema esta semana para lembrar que tem uma posição há muito conhecida, que é a de «punir o enriquecimento de titulares de cargos públicos que não tem justificação». E que «já se perdeu tempo demais». 

Ora, será a Justiça em Portugal irreformável? Será uma utopia? 

Em 2012, Laborinho Lúcio sentia que «a Justiça precisava de uns abanões». Agora, António Piçarra sente-se frustrado, em fim de mandato, porque «nunca me passou pela cabeça que (…), decorridos três anos, ainda estivesse agora a conhecer as decisões instrutórias de alguns processos (…)» que «já deveriam estar julgados».

O certo, porém, é ainda sobejou tempo ao juiz Ivo Rosa para mandar investigar o sorteio que atribuiu o processo Marquês ao juiz Carlos Alexandre.

Esqueceu-se, porém, de mandar extrair outra certidão para investigar o ‘enguiço’ do sistema informático, que o selecionou à quarta tentativa para juiz instrutor do processo Marquês, depois de o sorteio eletrónico ter ‘entupido’ e dado três erros…