Joaquim Horta. ‘Fascina-me perceber as pessoas e os seus raciocínios’

O ator de 47 anos foi novamente pai, desta vez de gémeos. Apaixonou-se por motas depois de tirar a carta para representar uma personagem e, atualmente, até organiza eventos. Encontra-se agora a encenar a peça Memórias de uma Falsificadora, inspirada na história de Margarida Tengarrinha, a Luta na Clandestinidade pela liberdade em Portugal.

É mais difícil ou mais fácil do que pensou conciliar o trabalho com ser um pai presente?

Não é possível conciliar, ou se está num sítio ou no outro. Mas aquilo que tento fazer é tentar trabalhar menos e quando estou, enquanto pai, estar mesmo dedicado. Acho que isso é a principal dificuldade nos dias de hoje. Como é que nós, depois de um dia de trabalho, especialmente no meu, em que vou para casa a pensar no que fiz e no que tenho de fazer, conseguimos pôr isso de lado para nos dedicarmos ao nosso filho? Para mim, isso é super importante, quero muito que ela cresça com essa confiança e que não venha a crescer com a minha falta, sentido que eu estava, mas que era uma figura ausente. 

Foi pai novamente há dias, desta vez de gémeos. Como foi a preparação?

Acho que não há preparação possível. Claro que vamos pensando e tentado antecipar isso, mas é um bocadinho assustador às vezes porque se uma [filha] exige muita dedicação e tempo, três vai ser a loucura. E a minha filha vai sentir isso também, vai deixar de ser o centro das atenções e não vai ser possível receber toda a atenção que estava a receber até agora. Há que tentar, de alguma forma, repartir isso e pensar como é que hei de arranjar maneira de eles não sentirem que estão a ser trocados ou postos de lado e criar uma família unida.

Começou a representar quando estava na faculdade, num clube de teatro. Já tinha sentido essa vontade antes?

Não. Isto aconteceu por acaso. Eu estava na faculdade ao final do dia, já tinham acabado as aulas, estava lá na conversa com outros colegas e, entretanto, apareceu um que se tinha inscrito no clube de teatro da faculdade de letras. Ele estava muito entusiasmado com isso e quando estava a falar daquilo, não sei bem porquê, dirigiu a atenção para mim a dizer que eu tinha de ir, e eu resolvi experimentar. A partir daí, tudo se desenrolou. É engraçado porque, na novela que eu estou a fazer agora, está lá o Vitor d’Andrade, que estava nesse mesmo grupo, naquele ano comigo e era uma pessoa que, na altura da faculdade, já tinha tudo isso muito definido na cabeça dele. Eu lembro-me perfeitamente de, como ele, existirem outros colegas que já tinham aquele caminho definido e de eu achar que era uma coisa engraçada, mas que não ia ser por aí. Mas mais tarde, fui-me envolvendo cada vez mais e passava mais horas no auditório do que nas aulas, tanto que acabei por reprovar o ano, e percebi que tinha de resolver isso na minha vida, não podia andar a arrastar-me na faculdade. Acabei por fazer as provas para o conservatório, entrar e, a partir daí, tudo fluiu.

Quando era criança, o que sonhava ser?

Nunca tive um objetivo específico. Acho que ser palhaço era uma ideia, ainda que longínqua, e a verdade é que acabei por não calhar muito longe. Mas também pensei em ser bombeiro, jogador de futebol…

Porquê palhaço?

Porque eu gosto muito de rir e de me divertir e achava isso muito engraçado, nos palhaços e nos cómicos. Embora hoje tenha uma noção diferente, de como isso é difícil, mas continua a ser uma coisa que me atrai. Daí o gosto pelos palhaços, foi uma coisa que sempre me divertiu.

Além da representação, as motas também são uma das suas paixões…

É outro acaso. Eu tirei a carta de mota por causa de um papel que ia fazer, em que o personagem andava de mota, e encarei isso como mais uma ferramenta para a minha profissão, mas também se tornou parte da minha vida.

E o que é que o fez querer levar as motas para a sua vida, não ficando apenas por aquele projeto?

Não sei. Quando se começa a gostar de uma coisa, não é de um momento para o outro, não é uma resposta imediata do género: ‘porque eu estou a gostar disto’. É algo que só se percebe depois. E agora, que me perguntam muito o que é que me fascina nas motas, eu procuro teorizar sobre isso. Acho que aquilo que me fascina, na essência, é o facto de serem difíceis de conduzir. É esse desafio que me fascina, tal como a minha profissão: eu hoje sou melhor do que aquilo que era há uns tempos e, hoje, ando melhor de mota do que andava no início. É isso que me fascina, a dificuldade e a capacidade de progressão porque vais sempre aprendendo e descobrindo coisas novas.

O gosto pelas motas acabou por se aliar ao gosto por viajar?

Sim. Eu acho que sou péssimo com os meus gostos, no sentido em que não consigo tirar-lhes só o prazer: com as motas, eu agora organizo eventos e isso dá-me muito mais trabalho sentado ao computador do que prazer a andar de mota, mas também me dá prazer. Portanto, se calhar estou a roubar um pouco do prazer de viajar para estar a organizar coisas. Acontece a mesma coisa com o representar: o que eu gosto realmente é do desafio dos ensaios mas, quando isto se torna uma profissão, acabas por fazer tanta coisa que, na maior parte do tempo, estás a preparar, a estudar e a pensar e não numa sala a ensaiar.

Tem alguma viagem de sonho para fazer de mota?

Tenho muitas. Se tivesse de escolher só uma, acho que diria a Califórnia, toda aquela costa americana.

Neste momento, em termos profissionais, o que anseia por fazer?

Essa pergunta vai dar origem a uma crise… Não sei, às vezes coloco-me essa pergunta e tento fazer um balanço daquilo que já fiz e do que ainda gostava de fazer. Eu agora estou a ensaiar uma peça por zoom – As memórias de uma falsificadora – e isto é uma experiência nova, nunca o tinha feito e acho que nem faz muito sentido. Mas, ao mesmo tempo, estou a adorar porque estou a ensaiar e é daí que eu tiro mais proveito, mesmo que neste momento os ensaios sejam pouco mais do que ler texto e falar das palavras. Portanto, é disto que eu gosto. Não tem de ser um mega espetáculo porque aquilo de que eu gosto realmente é de discutir ideias e de pensar em projetos. Não tenho “O” projeto da minha vida, nunca pensei nisso.

Se o obrigassem a escolher entre a televisão e o teatro, o que escolhia?

É uma escolha difícil. Obviamente que o prazer que eu tiro do teatro é diferente do prazer que eu tiro da televisão. Como eu costumo dizer: o teatro é um jantar com amigos, é uma boa refeição com muita conversa depois; a televisão é fast-food, também sabe bem, mas é mais rápida e não temos tempo para conversar. Eu tenho prazer nos dois sítios e sabendo disso, abdicar de um seria muito difícil. A tentação seria escolher o teatro, mas ia sentir falta do outro lado. A televisão é uma espécie de ginásio onde tu tens de responder rapidamente, tens de fazer rapidamente e isso para mim, enquanto ator, é muito importante. Acho que depois no outro trabalho, me ajuda também. Quando eu vou para o teatro a minha dificuldade não é a cena, é antecipar isso.

Agora está a fazer parte da novela Bem me quer. O que está a achar do desenvolvimento da sua personagem?

Atualmente as novelas têm de surpreender a toda a hora e isso tem consequências para os personagens. O personagem hoje adora preto, mas depois de almoço já adora outra cor qualquer. A vida também é assim, e nós também mudamos cada vez mais rápido de intenções, mas para nós, atores, é estranho. É estranho dizer que ‘este personagem é muito engraçado por causa disto’, mas a seguir leio o episódio e isso já não existe. Portanto, acho que o desafio é tentar integrar essas mudanças tão rápidas e conseguir ter um fio condutor.

Que estratégias tem para lidar com essas mudanças e essa imprevisibilidade?

Todas as que existirem, eu aceito. 

Que características do Rodolfo gostava de ter?

Não há muitas. A ambição, talvez. Quando eu reflito sobre a minha pessoa, aquilo que eu acho que tenho menos é ambição. Ainda há pouco estávamos a falar sobre projetos e eu não sei que projetos quero fazer. Não consigo dizer que quero fazer o Macbeth na Altice Arena. Não tenho essa ambição e se calhar isso faz-me falta. Não no sentido de ultrapassar toda a gente e esmagar toda a gente, obviamente.

Onde vai buscar inspiração para conseguir dar vida a personagens diferentes umas das outras?

A inspiração está à nossa volta. Acho que aquilo que me agrada, também, é compreender pessoas. Eu sou mais de ouvir do que de falar exatamente por isso. Fascina-me perceber as pessoas e seguir os seus raciocínios, acredito que é isso que me ajuda depois a ir perceber personagens tão diferentes. Nunca julgo os personagens, tento sempre ir ao encontro deles e acho que é essa a minha missão: um ator não deve trazer um personagem para ele, mas sim sair de si e ir ao encontro do personagem, embora isto seja quase impossível, mas também é isso que torna o processo fascinante. 

Traz para casa emoções que sentiu durante o dia enquanto personagem?

Trazes sempre para casa, mas não te transformas na personagem. Se estás o dia inteiro a sofrer ou irritado, é difícil chegar a casa e fazer a transição necessária e fingir que aquilo não aconteceu. Aquelas emoções aconteceram e estiveste o dia todo com uma nuvem em cima e é necessário criar um momento de transição.

O que o ajuda a fazer essa transição?

Não tenho um ritual específico. São várias coisas: pode ser somente o facto de ir de mota do trabalho para casa, outras vezes preciso mesmo de uns minutos em casa sossegado e sozinho, que agora é mais difícil. Às vezes nem nos apercebemos, mas trazemos realmente energias, ainda que não seja nada esotérico, para casa. Vimos com uma certa velocidade e um certo raciocínio e temos primeiro de parar e olhar para o sítio onde estamos, para que consigamos deixar isso no trabalho.

Como adaptaram as gravações na televisão à pandemia?

É muito diferente, tenho de pensar sobre isso. É curioso pensar em como as coisas serão quando tudo isto acabar. Trabalhamos de máscara, tentamos ter algum controle nos ensaios, não estamos à-vontade, somos testados, medimos a temperatura, cada um tem o seu espaço para trocar de roupa e desinfetar as coisas. As rotinas mudaram completamente, mas já estou tão habituado que nem reparo nelas. Tornou-se de facto muito diferente. Nós começamos com ensaios presenciais, mas sei que há projetos televisivos que fazem gravações por zoom. 

Isso veio de algum modo dificultar o trabalho?

Nós somos fantásticos a adaptar-nos às mudanças, tanto que eu estou a dizer que já nem me lembro de como as coisas eram antes, de tão habituado que estou. Acho que isto muda tudo. O nosso trabalho passa muito pelo contacto físico e por tentares sentir e perceber o outro e a pandemia criou uma grande distância. 

Continua a ser seguro produzir e assistir a cultura?

Acho que assistir a espetáculos ao vivo é bastante seguro e que o esforço exigido é muito maior do que em outras áreas. É claro que vivemos num período muito específico, no meio de uma pandemia, e todos os esforços são poucos e devemos respeitar isso. Eu aceito perfeitamente que as pessoas tenham medo de vir a uma sala de espetáculos, mas é mais seguro do que os transportes e tudo o resto. Eu não acredito muito neste discurso de ‘as pessoas têm de ir assistir’, não, as pessoas têm de se sentir confortáveis e de sentir que estão a zelar pela sua saúde e a dos seus. Nós estamos a viver um período que esperemos que passe rápido para podermos voltar a estar à-vontade. Em termos de produzir, eu já estou habituado e já não penso muito sobre isso. No início, na primeira vez que saí para ir ensaiar, pensei: ‘será que estão a tomar as medidas certas?’, mas agora já não penso nisso e não tenho esse receio porque esta é a minha profissão e sinto que há uma rede de segurança.

Esteve a dar aulas de representação em África. Como apareceu o convite?

O convite surgiu através do realizador Sérgio Graciano, que ia coordenar um projeto de ficção em Angola. A ideia era procurar atores, dar formação e acompanhar as gravações e foi isso que aconteceu.

O que trouxe para casa do tempo que passou lá?

Quando estamos afastados de casa vivemos as coisas de outra forma. Angola é um país imenso, as gravações ocorreram em várias zonas, o que me permitiu conhecer realidades muito diferentes. Mas aquilo que nos marca mais são as pessoas, guardo boas memórias, especialmente do elenco mais jovem. 

Está a encenar a peça Memórias de uma Falsificadora. De onde surgiu a ideia?

Cruzei-me com o livro por acaso, numa livraria. O titulo atraiu a minha atenção e levei para casa. Estamos habituados a julgar o ato de falsificar, como um ato moralmente condenável. Usar este termo no título de um livro é claramente uma provocação, o que vim a comprovar com a própria Margarida Tengarrinha, que confessou que foi a pedido do seu editor que acrescentou a Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal. Durante a leitura foi crescendo a vontade de transportar aquelas histórias para um palco, senti que estas palavras tinham de ser ditas em voz alta. Precisavam de uma voz, de um corpo e de uma pateia. Ler um livro é um ato solitário, sim podemos partilhar livros, sim os livros tocam-nos, sim os livros fazem-nos pensar… Mas o confronto plateia/ator potência tudo isso de outra forma. Não conhecia a Margarida Tengarrinha. Quando acabei de ler o livro, tinha já a ideia de fazer a adaptação, entrei em contacto com a editora e consegui chegar ao contacto com a Margarida. Combinei ir ter com ela a Portimão e almoçar com ela. Assim aconteceu, almoçámos e passámos a tarde a conversar. Falei-lhe da minha vontade de fazer um espetáculo a partir do seu livro e ela contou-me várias das suas histórias de vida. Ao fim do dia, enquanto fazia a viagem de regresso a Lisboa, era claro para mim que tinha de fazer este espetáculo. Atrai-me o lado que fica na sombra, aquilo que é pouco falado, o quotidiano desprezado. A Margarida tem uma situação no livro que explica isto na perfeição: «Quando leio relatos de vários camaradas, que já foram publicados, constato que falam de factos políticos importantes, momentos altos e heroicos da luta, mas nunca abordam estas questões do quotidiano que nós mulheres, vivemos pacientemente». O espetáculo era para ter estreado em abril de 2020. No início dos ensaios, eu já tinha uma primeira versão do texto. Com a pandemia fomos forçados a interromper os ensaios, logo no segundo dia. Houve momentos em que pensei que o espetáculo não ia acontecer. Durante o primeiro confinamento liguei à Margarida Tengarrinha no seu aniversário, quando lhe perguntei como estava, ela respondeu, com o seu sentido de humor característico, que tinha grande experiência em estar confinada. Comecei a encontrar vários pontos em comum entre a situação que vivíamos e aquilo que a Margarida viveu. E fui trocando emails com a Margarida para saber a sua opinião, para saber como comemorou o 25 de Abril, já tendo a ideia de ir tentar integrar isso na peça.  

Que importância dá a que se fale sobre o 25 de abril?

Eu tinha duas semanas [de vida] quando se deu o 25 de Abril, é um período próximo, mas corremos o risco de ficar perdido na memória. Acredito que o teatro tem o poder de confrontar as pessoas com histórias passadas ou presentes, vividas ou não e de as colocar a falar e a pensar. O teatro tem o poder do encontro vivo. Trabalhar este período, tem sido uma descoberta. Não descobri um novo Portugal, mas percebi que não o conhecia assim tão bem. É obvio que há a intenção de lembrar como o regime era autoritário, repressivo e violento e como foi importante a luta na clandestinidade para lhe colocar um fim. Lembrar é importante, para não voltarmos atrás, mas infelizmente encontram-se muitos reflexos do que é dito no espetáculo nos dias de hoje. Escolher um texto e encená-lo é sem duvida assumir uma posição e querer desempenhar um papel ativo no mundo em que vivemos. 

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