‘Não posso fazer mais’, confessa o Presidente da República

Surpreendentemente, a estratégia de combate à corrupção que o Governo recentemente apresentou, apesar de conter normas interessantes que constituem pequenos passos positivos, dedica um ensurdecedor silêncio à problemática do enriquecimento indevido.

O Presidente da República aproveitou uma recente visita a uma escola, no dia de nova reabertura do ensino presencial, para fazer um apelo ao consenso dos partidos convidando-os a aprovar, com brevidade, legislação que crie o crime de enriquecimento indevido.

Não existem muitas dúvidas que a sociedade portuguesa converge, na sua maioria, no sentido de legislar sobre esta matéria sensível pois, sob esta forma, ou sob o modelo de enriquecimento ilícito, tal matéria tem sido debatida, pelo menos, há 15 anos.

Com efeito, foi em 2006, que o deputado João Cravinho, apresentou no grupo parlamentar socialista, um projeto legislativo anticorrupção que, depois de provocar (?) uma enorme controvérsia acabou por ser retirado, apesar de o autor ter aceite excluir a criminalização do enriquecimento ilícito cuja formulação levantava dúvidas constitucionais.

Alguns anos depois, após uma conveniente estadia em Londres na administração do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, o ex-deputado explicou que o «o pacote anticorrupção, que apresentou, ficou pelo caminho porque não houve a menor vontade política de levar aquilo para a frente».

João Cravinho não disse apenas isso, foi um pouco mais longe, mas a exata reprodução dos seus juízos dessa altura, não acrescentavam nada à economia deste texto.

Em janeiro de 2007, o assunto foi enfaticamente discutido entre a oposição (PSD) e o governo (PS) tendo dado origem a um clima de crispação e violência verbal imprevistos, com acusações de ‘baixeza moral’ e ‘rabos de palha’ a servirem de armas de arremesso político entre os participantes.

Em 2012 e 2014, o governo de Passos Coelho voltou a propor legislação sobre esta matéria, mas os diplomas da AR foram chumbados no Tribunal Constitucional por violarem normas constitucionais estruturantes do estado de direito e das garantias individuais dos cidadãos.

Apesar de terem sido identificadas por especialistas de direito constitucional e outros agentes políticos, diversas vias para contornar o problema da inconstitucionalidade dos diplomas, não foi mais possível encontrar uma maioria parlamentar sólida para legislar sobre a matéria.

É pois evidente que tem existido no ‘mainstream’ político, uma falta de vontade notória para atacar este tipo de problemas, que é agravada porque surge embrulhada numa hipocrisia que se esconde atrás de dificuldades constitucionais.

Não é esse, contudo, o sentimento dominante pois reconhece-se uma perceção nítida da existência de um grave problema nesta área de intervenção, razão pela qual a sociedade reclama, apoia e exige legislação clara, eficaz e transparente para atacar a corrupção enquanto fenómeno social.

O bastonário da Ordem dos Advogados declarou, há poucos dias, que é necessário um combate imediato contra essas práticas e que esse combate exige a aprovação urgente de uma lei que estabeleça o crime de enriquecimento indevido.

Surpreendentemente, a estratégia de combate à corrupção que o Governo recentemente apresentou, apesar de conter normas interessantes que constituem pequenos passos positivos, dedica um ensurdecedor silêncio à problemática do enriquecimento indevido.

Portanto e como facilmente se comprova, a discussão sobre estas matérias já dura pelo menos há 15 anos, surge recorrentemente nas prioridades da intervenção legislativa criminal e já ‘concedeu’ suficiente tempo, para que os problemas jurídico-constitucionais que levanta, estivessem resolvidos.

Não tendo sido assim e havendo ainda quem pense que não deve ser assim, tem de concluir-se que, como avisava Cravinho, estamos perante um bloqueio de natureza essencialmente político-partidária.

Nesse sentido convergem também as estranhíssimas declarações da liderança do PSD que, afirmando-se, em princípio, disponível para encarar o desafio, logo a seguir acrescenta, pela voz do dr. Rui Rio, que o assunto não pode ser tratado a quente, deixando-nos na dúvida sobre o grau de temperatura requerida e sobre quantos mais anos, afinal, serão precisos para que a matéria arrefeça.

Foi por ter compreendido corretamente esta realidade e constatar que a mesma está a criar alarme público, em virtude de decisões judiciais recentes, que o Sr. Presidente da República, em jeito de lamento (não posso fazer mais) mas também de magistratura de influência (o PR quer que se avance finalmente para o crime de enriquecimento injustificado e considera que quanto mais depressa isso acontecer, melhor) deu o adequado recado aos partidos obrigando-os a meterem ‘os pés ao caminho’.

É óbvio que, agora, este recado não pode nem vai ser ignorado, essencialmente porque a opinião pública não o compreenderia, mas também porque a ‘desobediência’ ajudaria a consolidar e desenvolver a grave crise moral que Portugal atravessa.

Finalmente, também não é aceitável deixar de encarar esta realidade quando se espera que o país receba, até ao fim da presente década, cerca de 60 mil milhões de euros de fundos da UE (11,2 do PT 2020, 33,6 do novo quadro financeiro plurianual, 13,9 da ajuda à recuperação e resiliência e 2 de Assistência para a coesão), ‘bazuca ou vitamina’ que, se continuar o vazio jurídico em relação a este tipo de crimes, constituirá uma enorme atração para a ilicitude.

Celebra-se agora o 48.° aniversário do 25 de Abril e homenagear Abril é defender a Liberdade, mas também é combater a corrupção. O prof. Marcelo Rebelo de Sousa acaba de o recordar.