O homem que se sentou à mesa com o Diabo

Num combate contra Joe Baksi, Bruce recebeu um golpe que agudizou o seu descolamento de retina e abandonou o boxe para sempre

Aos seis anos já Bruce era, como se costuma dizer, lixado para a porrada. A sua vontade de se meter em cenas de pancadaria até agradava ao pai, de certa forma. Afinal, desde cedo que deixou de preocupar com a vadiagem do miúdo: volta e meia podia aparecer com um olho deitado abaixo, mas o mais provável era ter deixado o adversário estendido nas vascas da agonia, com o queixo deslocado e os supercílios a precisarem de ser saturados com pontos naturais.

Bruce Woodcock era uma ameaça ambulante nas ruas de Balby, um subúrbio de Doncastar, onde nasceu. Não se pode dizer que a miudagem que lá vivia no início dos anos 20 tivesse uma grande panóplia de interesses se não jogar futebol, jogar às cartas e andar à pancada. E, geralmente, os dois primeiro entretenimentos conduziam fatalmente ao terceiro numa espécie de carrossel avariado.

Em 1921 foi inaugurada a LNER (London and North Eastern Railway), a segunda maior das Big Four companhias de caminho de ferro de Inglaterra. Mal teve uma oportunidade, Bruce tratou de arranjar emprego para ajudar as contas sempre negativas que apareciam em casa da família. Ganhou corpo e resistência. Tornou-se um brutamontes. Continuava a arranjar moscambilhas, andasse por onde andasse, mas agora havia ainda mais respeito pelos seus punhos sujos de óleo. O pai que fora campeão de pesos-médios no exército, alimentou a sede de bordoada do filho, além de se tornar seu treinador pessoal no ginásio mais próximo. Seguro de que Bruce iria ser um boxeur imbatível, inscreveu-o no campeonato dos Northern Counties como peso-médio. Bruce arrasou os competidores que tiveram o desplante de subir ao ringue com ele e qualificou-se para representar a Inglaterra no Campeonato Europeu para Amadores de 1939, em Dublin.

Aos 19 anos de idade, Bruce provou do seu próprio remédio ao defrontar brutos ainda mais brutos do que ele._No caso, Franciszek Szymura da Polónia nas meias-finais e Lajos Szigeti, da Hungria, na decisão pelo terceiro lugar. Ambos os Woodcock, pai e filho, regressaram a Balby a bufar pelas narinas mas não completamente convencidos da realidade das tareias que o mais novo tinha suportado.

À medida que se retemperava à custa de guisados de borrego preparados pela mãezinha e comidos com dificuldade pelo buraco onde devia estar um incisivo e dois molares que deixara em Dublin ou na luva direita do rapidíssimo Szigati, Bruce recordou-se de um medieval ditado britânico que aconselha: «You must have a long spoon to sup with de Devil». E ele estava decidido a sentar-se à mesa do Diabo, mesmo sem ter sido convidado. Foi preciso esperar.

Bruce Woodcock escapou de ir dar com os costados na frente de batalha durante a II_Grande Guerra porque era um profissional de mão-cheia e precisavam dele de roda das locomotivas, esses objetos fundamentais para o esforço de guerra. Foi enviado para Manchester como engenheiro de manutenção e, pelo caminho, conheceu Tom Hurst que ainda se recordava perfeitamente das sovas que apanhara em Dublin. Foi Tom que o fez regressar ao boxe. Em 1942, tinha mandado às malvas a maquinaria locomotora e era profissional de boxe de corpo inteiro, obtendo vitórias interessantes mas contra peso-médios. Hurst sentia que era necessário transmitir confiança a Bruce antes de o lançar às feras. Ou mandá-lo jantar com o Diabo, se assim o preferirem.

Em junho de 1945, Woodcock arranjou finalmente uma colher suficientemente grande para repartir a sopa com o danado do Belzebu. Em White Hart Lane, Londres, campo de futebol do Tottenham, Woodcock despedaçou Jack London, o campeão do Império Britânico de pesos-pesados. No sexto round, depois de ter levado London ao tapete por três vezes, aplicou-lhe um tremendo uppercut e deixou-o estendido como um cartucho de papel amachucado. Pouco depois repetiu a carga de porrada, desta vez na pessoa do francês Paul Albert Renet, tornando-se campeão da Europa.

A partir daí, as coisas começaram a correr-lhe mal. Entre vitórias pouco expressivas, com a exceção da defesa do título europeu levada a cabo sobre Stephane Olek, habituou-se a ver-se espancado por gente que deveria deixar KO só com o bafo.

A derrota frente a Joe Baksi, na Harringay Arena, no combate decisivo para se decidir quem iria defrontar o campeão do mundo, valeu-lhe um maxilar partido e o olho direito pisado como se um camião lhe tivesse passado com os rodados dianteiros e traseiros por cima. Tinha um descolamento de retina. Viu-se obrigado a parar._Quando regressou, num combate contra Lee Savold, de novo no corredor que leva ao título mundial, um rasgão profundo no sobrolho fez com que o olho ficasse praticamente solto. Bruce era um tipo orgulhoso. Respeitou a derrota e anunciou que não voltaria a combater. Desistiu de vez em sentar-se à mesa com o Diabo.

afonso.melo@newsplex.pt