Ursula, não estás sozinha

As mulheres não devem auferir mais do que os homens, nem serem tratadas, em momento algum, com discriminação positiva (que é o que as quotas efetivamente fazem). As mulheres não devem ter vias rápidas de acesso ao poder ou a qualquer tipo de função, decorrentes apenas e só do seu género. Isso será um sinal…

por Sofia Aureliano

Quem me conhece sabe que sou pouco dada a manifestações de feminismo, não sou acérrima defensora de qualquer mecanismo de quotas (apesar de compreender porque é que eles ainda têm de existir), detesto o Dia da Mulher por não lhe encontrar fundamento e não costumo ser adepta de grandes discussões sobre a igualdade de género.

Não porque não reconheça a diferença de género e a discriminação que persiste, mas porque – provavelmente de forma ingénua – acho sempre que a meritocracia acabará por superar o preconceito. É nisso que quero acreditar e, por isso, circunscrevo a minha mente a seguir esse raciocínio. O que me faz viver menos inquieta, na maior parte do tempo, mas, obviamente, bastante mais cega.

Enquanto “ser a primeira mulher” a realizar qualquer coisa continuar a ser notícia, não há igualdade de género. Há eventualmente a reminiscência do quão aquém estamos do objetivo que há muito julgávamos que deveria estar alcançado. E a consciência de que temos ainda pelo menos mais uma década de caminho a percorrer.

Olhando para as universidades portuguesas sabemos que há mais mulheres do que homens: nas licenciaturas, nos mestrados, nos doutoramentos. Mas continuam a ser menos no corpo docente e muito menos nos conselhos científicos, nas presidências ou reitorias.

O mesmo acontece nas empresas. Podem até existir mais mulheres a trabalhar numa empresa, mas são as que têm mulheres em lugares de topo. E quando existem, são publicamente louvadas por isso. Por serem exceção.

A desigualdade é escandalosamente mais evidente em sociedades em desenvolvimento, em que nem sequer do ponto de vista legislativo as mulheres são consideradas cidadãs com os mesmos direitos, mas não está ausente de Portugal, da Europa, do mundo ocidental.  Ainda que se manifeste de forma mais subtil.

O incidente diplomático que aconteceu com a Presidente da Comissão Europeia na sua visita à Turquia, um infeliz episódio que veio a intitular-se sofagate que levou dois homens a ocuparem as duas cadeiras na sala, deixando a mulher de pé, devia ter tido consequências mais profundas. O Presidente do Conselho Europeu e o Presidente turco Recep Erdogan não deviam ter deixado uma cadeira livre para Ursula Von der Leyen se sentar por esta ser mulher. Ainda que tal gesto não lhes ficasse mal, do ponto de vista de etiqueta ocidental, tinham a obrigatoriedade de tê-lo feito porque estava na sala a Presidente da Comissão Europeia, que protocolarmente se equipara aos dois homens presentes. Logo, se há três pessoas com o mesmo grau de precedência para sentar e apenas duas cadeiras, quem falhou clamorosamente foi o anfitrião, Erdogan, que não só não assumiu o grave erro protocolar como não o corrigiu e agiu com a naturalidade de um ato absolutamente corriqueiro.

Este momento insólito aconteceu em 2021, com um chefe de estado de um país que quer ser membro da União Europeia, e foi corroborado pelo Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel que, ao aceitar ocupar a cadeira que lhe estava previamente destinada, aceitou categoricamente as condições daquele encontro.

Um dos temas da agenda desta reunião, que deveria ter sido tripartida, era a saída recente da Turquia da Convenção de Istambul, o tratado pan-europeu assinado em 2011 que defende a igualdade entre género, o combate à discriminação contra LGBT e a luta contra a violência doméstica.

Este erro protocolar claramente propositado é o reflexo de um país onde existe dos mais elevados números de feminicídios e onde o chefe de Estado já demonstrou vontade de adotar o modelo japonês do sistema educacional de segregação de género. Presumivelmente, devem ser-lhe difíceis de tolerar momentos como aqueles em que tem de justificar atos ou decisões políticas perante uma mulher, ou em que constata que, segundo a OCDE, também na Turquia o desempenho e aproveitamento escolares das meninas, raparigas e jovens adultas é, em média, superior aos dos pares do género masculino.

Depois de semanas de silêncio, Ursula Von der Leyen veio manifestar-se sobre como se sentiu sozinha naquele momento, como mulher e como cidadã europeia. Estará sozinha se ficarmos por aqui e, deste episódio, não se retirarem conclusões nem consequências. Porque, dependendo do que for a sua ação futura, este também pode ser o momento em que a Presidente da Comissão Europeia mais representou as mulheres e cidadãs europeias. E, por isso, o momento em que mais acompanhada esteve.

Desde 1987 que a Turquia pediu a adesão a União Europeia. Ainda não a conseguiu, mas negoceia-a formalmente desde 2005. Espero que episódios como este sirvam para evidenciar como essa adesão deve ser cada vez mais uma miragem.

Não gosto de rótulos, mas, perante a observação do que a rodeia, é difícil para uma mulher dizer que não é feminista. É o mesmo que dizer que concorda que o seu trabalho vale menos do que o do seu par, homem, e por isso deve ser remunerada, em média, em menos 25 a 30% (esta ainda é a realidade em Portugal em 2020, segundo o Instituto Europeu para a Igualdade de Género).

É o mesmo que dizer que não deve aceder a direitos iguais pela diferença de género e que, pelo contrário, concorda que possam agravar-se os seus deveres.

É o mesmo que ignorar que a maioria dos cargos políticos e de tomada de decisão é ocupada por homens e que isso é apenas uma circunstância naturalmente decorrente dos homens serem mais inteligentes, mais bem formados ou estarem mais bem preparados do que as mulheres.

Nada disso é verdade.

O problema é que neste combate se incorre muitas vezes no erro de lutar pela cura com as mesmas armas do preconceito, da distorção, da desproporcionalidade invertida, e coloca-se como meta a prova de uma alegada superioridade de género, quando o foco só pode estar na igualdade, se for progresso aquilo que queremos.

As mulheres não devem auferir mais do que os homens, nem serem tratadas, em momento algum, com discriminação positiva (que é o que as quotas efetivamente fazem). As mulheres não devem ter vias rápidas de acesso ao poder ou a qualquer tipo de função, decorrentes apenas e só do seu género. Isso será um sinal de fraqueza. De uma inferioridade que elas não têm.

As mulheres no mercado de trabalho não devem ser instrumentalizadas e ocupar cargos para demonstrar a inovação e o vanguardismo desta ou daquela empresa. O mesmo não deve passar-se na política, para transmitir a ideia de um partido renovador ou progressista.

Tanto os homens como as mulheres devem ocupar os lugares para os quais forem os melhores candidatos entre os seus pares. 

Dirão que é uma visão ingénua da sociedade. Admito que sim. Mas é nesta direção que defenderei sempre a terceira cadeira na sala, lado a lado com as demais que a ela tenham direito. E com a consciência de que esta não é uma matéria que se mude da noite para o dia, acredito que todo o feminismo se esvaziará quando se entender que a ascensão das mulheres a lugares de topo não diz nada sobre a empresa, a organização ou o partido. Diz apenas sobre a sociedade e o ser humano.