Um golpe profundo na democracia

Talvez sem se aperceber, o juiz Ivo Rosa vibrou um golpe profundo na democracia portuguesa. Uma das pedras basilares da democracia é a confiança na Justiça. Ora, no dia 9 de Abril, a confiança na Justiça foi profundamente abalada.

Porquê?

Porque, seja qual for a opinião que cada um tenha sobre o acórdão de Ivo Rosa, ficou a saber-se uma coisa: não há uma Justiça, há várias justiçazinhas.

A Justiça varia consoante o juiz.

Há tantas Justiças como juízes.

Se um fulano for julgado pelo juiz A tem forte probabilidade de ser condenado, se for julgado pelo juiz B é muito provável que seja absolvido.

Isto é o oposto da Justiça – é o reino da arbitrariedade.

Mas o acórdão levantou outro problema.

Como é público e notório, José Sócrates levava uma vida de estadão.

Até parecia fazer gala em ostentar a riqueza, deslocando-se num grande carro (que depois escondeu), vivendo num prédio luxuoso, convidando os amigos para restaurantes caríssimos, passando férias em hotéis de seis estrelas, viajando em 1ª classe nos aviões (aconteceu, num voo de Paris para Lisboa, o primeiro-ministro português vir em classe Turística e José Sócrates em 1.ª classe).

Ora, que explicação deu Sócrates para esta opulência?

Deu duas, contraditórias entre si.

Por um lado, disse que eram empréstimos do amigo Carlos Santos Silva; por outro, explicou que a família era rica e que a mãe até tinha uma fortuna num cofre caseiro.

Mas se a família era rica, por que precisou então José Sócrates dos empréstimos do amigo?

E para complicar as coisas, há ainda um avultado empréstimo bancário feito por Sócrates para alegadamente financiar a sua estada em Paris.

Enfim, uma trapalhada.

Para a qual o Ministério Público encontrou uma explicação que parecia lógica mas que Ivo Rosa se encarregou de destruir.

E, com isso, confessou a impotência da Justiça para atuar, mesmo quando as evidências abundam e as contradições são notórias.

Há um terceiro aspeto a considerar.
   O único caso de corrupção que o juiz admitiu existir já prescreveu.

E prescreveu como?

Com base num acórdão do Tribunal Constitucional, segundo o qual o prazo para a prescrição da corrupção começa a contar a partir do momento em que esta é acordada.

Ora, imagine-se o seguinte: Ricardo corrompe José para uma série de atos que se vão prolongar no tempo. José vai recebendo as quantias combinadas – e, entretanto, o prazo da prescrição esgota-se. A partir daqui, não só José já não poderá ser condenado como o dinheiro que continuar a receber pelos atos de corrupção é dinheiro ‘legal’ – porque o crime já prescreveu!

Mas quem pode ter feito um aborto jurídico tão óbvio?

Foi, entretanto, com base nele que José Sócrates escapou do único caso de corrupção que o juiz Ivo Rosa validou.

No fim de tudo, demolida pedra atrás de pedra a acusação do Ministério Público, o juiz confessou que, mesmo neste caso, a Justiça já não pode fazer nada.

O acórdão de Ivo Rosa, concorde-se ou discorde-se dele, foi uma patética confissão da incapacidade da Justiça para… fazer justiça.

Do extenso texto que o juiz leu perante as câmaras de TV, inferiu-se o seguinte:

1. Que não há em Portugal uma Justiça mas sim opiniões de juízes, que podem estar em contradição total. Ou seja, não existe Justiça, só existem opiniões;

2. Que a Justiça é impotente para punir situações criminosas evidentes. Mesmo quando os suspeitos fazem uma vida incompatível com os rendimentos que declaram ao fisco, e dão para o facto explicações inverosímeis, a Justiça não os consegue condenar;

3. Que a corrupção, mesmo em casos em que é provada, pode não ser criminalizada, desde que haja habilidade dos advogados na manipulação dos prazos.

Perante isto, o que dizer?
   Como confiar na Justiça?

Como confiar numa instituição que é assumidamente caprichosa (varia com o juiz), impotente (não consegue condenar casos evidentes) e permissiva (facilita a prescrição do crime)?

Repito como comecei: se uma das pedras basilares da democracia é a confiança na Justiça, então a confiança na democracia foi profundamente abalada no dia 9 de Abril, com a leitura do acórdão sobre a Operação Marquês.