O elogio ao Serviço Nacional de Saúde

Quando somos nós um dos inquilinos do corredor das macas, acabamos por entrar noutro mundo.

Podemos ver muitas imagens, ler muitos textos sobre uma urgência hospitalar, mas viver essa realidade na pele de doente altera tudo. Já tinha passado várias vezes pelo recobro, aquando das idas da minha mãe às urgências do São José e até tinha estado alguns minutos, quando me deixaram, junto à maca onde dormia sempre que tinha que ficar por lá durante a noite a recuperar. Mas quando somos nós um dos inquilinos do corredor das macas, acabamos por entrar noutro mundo. O cenário é muito idêntico ao que vemos nos filmes que retratam as trincheiras na II Guerra Mundial. Vemos e ouvimos pessoas em delírio – os traumas de infância e a fé saem da boca de alguns doentes como se tivessem sido possuídos por uma força estranha. De olhos fechados, uma mulher gritava por familiares enquanto pedia ajuda divina: «Haja Deus!, Haja Deus!», gritava. Ao meu lado dormia uma refugiada síria que tentara pôr termo à vida. Do lado esquerdo, um homem em êxtase pedia um urinol, apesar de não conseguir fazer uso dele.

Enquanto uns ressonavam a um nível tal que até a mim impressionava, outros dormiam como se já não respirassem. As horas custavam a passar e ia podendo ver o empenho e profissionalismo de alguns médicos, enfermeiros e auxiliares. Mudar fraldas, medir a temperatura, tocar no corpo a ver se o doente continua com ‘aquela dor’, ou ocorrer a um grito mais sentido. Depois das 6h da manhã, dá-se o render da guarda, onde quem sai faz a radiografia dos doentes que estão nas macas. Insuficiência cardíaca, pneumonia, AVC, infeção respiratória, pielonefrite, hemodialisados, demência, cancros, entre outras patologias, são o retrato dos entrincheirados. Todos vão seguir o seu caminho poucas horas depois. Ou vão para uma enfermaria, para outro hospital ou para casa. O corredor das macas é mesmo um local de passagem. Às 7h fiz o teste da zaragatoa e oiço a síria a gritar: «Não quero! Não quero!». Não há hipótese, ali todos têm de fazer o teste.

Algumas peripécias volvidas, deixo o hospital 16 horas depois de lá ter entrado. Tive a sorte de ser atendido por uma médica fantástica, daquelas que dão tudo à causa. Via-a a ajudar as colegas mais novas sempre com uma disponibilidade e simpatia impressionantes.

A caminho do novo hotel, perdão hospital, penso no dinheiro que deve ser gasto por dia no velho mas operacional São José e como está difícil gerir aquele enorme barco.

Já nos Capuchos, fico espantado com a boa disposição das enfermeiras e do restante pessoal auxiliar. O hóspede do lado, do alto dos seus 92 anos, diz-me: «Aqui quem entra doente fica logo curado com tamanha boa disposição». A equipa médica – onde não posso deixar de homenagear uma amiga muito especial, que é um autêntico anjo-protetor –, também não fica atrás, apesar de às vezes ser difícil distinguir quem é quem, pois usam fardas muito parecidas.

Eu que tanto sonhei com o fim do estado de emergência, acabo por ter de o passar num hospital. A vida é mesmo uma caixinha de surpresas. Tchim, tchim, à vida e aos profissionais de saúde que no último ano estiveram na linha da frente e a quem tanto devemos.

 

vitor.rainho@sol.pt