A banalização do fascismo

Não há melhor modo de ocultar as nossas debilidades que inventar um inimigo imaginário.

No filme A Vila, de M. Night Shyamalan, os habitantes de uma localidade cercada por uma floresta são desde o nascimento educados para nunca franquearem os limites da sua cidade. Nessa floresta, diz-se, vivem seres monstruosos. Por vezes escutam-se ruídos assustadores e circulam histórias tenebrosas sobre essas criaturas. Se a floresta não for atravessada, nada de mal acontecerá. Essas criaturas hediondas representam o perigo, o assustador, o proibido. Mais tarde alguém perceberá que esses seres não existem, que são criações fictícias dos responsáveis pela comunidade para a manterem totalmente controlada e obediente à visão única, a boa, do que é e deve ser a sua sociedade. Não há melhor modo de ocultar as nossas debilidades que inventar um inimigo imaginário. 
O termo fascista tem hoje um uso semelhante; acresce que de tanto ser usado e de modo tão diversificado já não significa nada de concreto. É um espantalho que se agita suscitando idealmente uma reação pavloviana. Designar o outro de fascista tem a função principal de o silenciar e diminuir. Esse uso não só falha qualquer rigor de análise história e política, como até é insultuoso para com as putativas vítimas do fascismo. A ideologia fascista tem um período e circunstâncias específicas. 

Podem alguns confundir o fascismo com uma qualquer perceção de uma hipotética ideia de proposta política totalitária iminente, mas estão confusos. O comunismo e o socialismo também foram totalitários e a visão da democracia hiperliberal como algo irrecusável tem essa dimensão, e com uma eficácia inédita. Vivemos tempos preocupantes, sim, mas o problema não está nos fascistas que não existem, projeção fantasmática dos nossos fracassos, mas num tipo de democratas que estão a destruir a democracia. O que consideramos causas são apenas sintomas, e alguns nem sintomas são. O regresso do epíteto fascista como arma que reduz o adversário ao plano do deplorável – mesmo quando não o é – significa principalmente que fascista passou a significar todo aquele que por palavras, ideias e comportamentos não se comporta de acordo com o meu modo de pensar e que coloca em causa a uniformização estabelecida, inclusive tudo o que tem de ser questionado e melhorado.

A utilização deliberadamente manipulatória do conceito, assim como a ligeireza e ignorância sobre ele são graves. Fazem lembrar a história de Pedro e o Lobo. E se um dia chegarem de novo os fascistas? E se estes já aqui estão, mas no outro lado da barricada? E se esses fascistas somos nós? (Por exemplo, a nossa escravidão à ideia de crescimento ilimitado).
Após a crise económica de 2008 e as deslocalizações das grandes empresas que aqui pregam a sustentabilidade e a igualdade de género mas migram para a Ásia e África, após o sucedido desprezo da política oficial e das elites medíocres em relação ao homem comum, muitos segmentos da população aprofundaram a sua descrença dos políticos do sistema. 

Ora, se vivemos no melhor dos sistemas, felizes, livres e prósperos, porque há uma rejeição e descrença deste paraíso em que vivemos? Por que motivo no espaço de alguns anos há mais fascistas e nazis no século XXI que nos anos 30 do século anterior? Como podemos preferir o mal à felicidade extasiante em que vivemos? 
Se o fascismo anda por aí, é um outro fascismo: ‘o fascismo do bem’, com o seu pensamento único sobre como pensar e estar.