Corrupção – ficaremos pelas intenções?

Um destes dias, num supermercado de bairro, a minha mulher assistiu a uma cena, infelizmente trivial, de um rapaz novo ser abordado pelos seguranças por roubo de comida. De imediato, o rapaz tudo devolveu, mas os seguranças não o libertaram, pretendendo chamar a PSP. Resultado? Um salsifré que nem imaginam, com as pessoas em polvorosa…

Um destes dias, num supermercado de bairro, a minha mulher assistiu a uma cena, infelizmente trivial, de um rapaz novo ser abordado pelos seguranças por roubo de comida. De imediato, o rapaz tudo devolveu, mas os seguranças não o libertaram, pretendendo chamar a PSP. Resultado? Um salsifré que nem imaginam, com as pessoas em polvorosa face aos gritos de ânsia de liberdade do ladino que explorava a impaciência da turba.

O tema de fundo nisto é que a turba gritava a plenos pulmões: «Deixem o rapaz que só roubou para comer; vão mas é prender os gajos que roubam milhões!». O pavio anda curto, a população anda indignada e com razão, pela perceção coletiva que transparece. Um recente julgamento mediático apenas contribuiu para reforçar estas ideias e entre o povo cresce a indignação.

Recentemente, na televisão, passou uma reportagem sobre a classificação de Portugal no índice internacional de perceção da corrupção de 2020 e Portugal vai piorando e descendo lugares neste ranking. Estamos em 33.º lugar com 61 pontos (13.º lugar na UE) e continuamos a discutir juridicamente se o enriquecimento ilícito é ou não criminalizado, quando há muitos anos o deveria ser.

Sobre as estratégias de combate à corrupção, felizmente que iniciativas não têm faltado. Como bem recordou João Cravinho em recente entrevista (tal como em anteriores – 2014 e 2018), já em 2006 tinha apresentado legislação que acusa de ter ficado pelo caminho, imputando responsabilidades ao PS e a Sócrates. Nessa época, Cravinho defendia, entre outras medidas, a obrigatoriedade de apresentação (com atualização) das declarações de património por parte de detentores de cargos políticos e de organismos públicos e que se mantivesse por cinco anos após a saída do cargo.
Ainda sustentava a criação do crime de enriquecimento ilícito (’oculto’), visando os titulares de cargos públicos. Passo a citar: «O que preocupa não é a pequena corrupção, mas a ‘corrupção de Estado’ e a ‘captura’ de órgãos da administração pública a quem cabe a decisão ou a preparação de decisões». Para tal, recomendava a inversão do ónus da prova quando se constatasse que o património de que são donos ou do qual usufruem não é compatível com os rendimentos declarados.

O PS (por Constança Urbano de Sousa) já saiu à liça, de forma pouco elegante, e veio acusar Cravinho de ter falhas de memória, reclamando que a legislação atual incorpora, por iniciativa do PS, muitas das medidas então preconizadas com exceção do enriquecimento ilícito, por ter sido considerada inconstitucional. Mas a representante do PS deveria concordar que pouco funciona, até pela recente publicação da ‘Estratégia Nacional contra a Corrupção (ENCC – 2020/24)’, aprovada em Conselho de Ministros de 18 março 2021.

Sobre esta ENCC, Van Dunen concedeu importante entrevista ao Jornal Económico (26 de março) e ficámos a conhecer diversas ideias lá incluídas, como «a adoção de pactos de integridade ou a implementação integral do Open Contracting Data Standard, na base de dados de contratos públicos e do Observatório das Contas Públicas», bem como a adoção de práticas internacionais de «Governance». 

Entre estas, salienta a importância das denúncias e mecanismos de proteção dos denunciantes, a elaboração de «Programas de Cumprimento Normativo (Compliance» (ver ISO 37001 – sobre anticorrupção), as melhorias na transparência de informação aos cidadãos, as intenções de alteração do Código de Processo Penal bem como o agendamento de sessões de julgamento, pretendendo obviar as morosidades dos processos.
Em contrapartida, confirma uma lógica de «omissão de medidas em relação aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, ao financiamento dos partidos e ao controle financeiro das autarquias locais», alegando que sobre o financiamento dos partidos e campanhas eleitorais já existe legislação suficiente, que apenas carece de ser aplicada de forma tempestiva e sistemática (Lei Orgânica 1/ 2018 de 19 abril). Ficamos é sem perceber como será obviada esta lacuna. 

Sobre a questão dos políticos e titulares de cargos públicos remete para as duas leis do pacote de transparência aprovadas em junho de 2019 pela Assembleia e promulgadas por Marcelo (embora com críticas, referindo que «se poderia ter ido mais longe»): o «regime de exercício de cargos públicos e políticos» e o «Estatuto dos deputados». 
Foi pena, digo eu, não se ter aproveitado a ENCC para incorporar essas notas de Marcelo na página da Presidência na internet. Curiosamente, pelo mesmo diapasão, a Associação Sindical dos Juízes reclama, entre outras críticas, que sobre o enriquecimento ilícito se deveria ter ido mais longe, com uma fiscalização mais apertada sobre os políticos e titulares de cargos públicos. Em suma, tudo efetuado em versão minimalista e depois admiram-se das perceções que o povo tem sobre as proteções concedidas a políticos? 

Por exemplo, gostaria de ter lido nessa entrevista que a ministra iria reforçar os meios de investigação do Ministério Público que são manifestamente escassos, sobretudo para a complexidade dos casos de ‘colarinho-branco’. Se isso tivesse sido proferido, estaríamos convencidos que agora poderia ser a doer. Assim, ficaremos certamente com mais e melhores ferramentas para atuar, mas com um ‘amargo de boca’ e incertezas se os grandes crimes de corrupção conseguirão ser punidos de forma célere.