‘Malhas Portuguesas’, as lãs de fabrico próprio

A páginas tantas de Malhas Portuguesas surge uma imagem pitoresca e vintage de uma elegante modelo rodeada de pescadores da Nazaré e vestida com um casaco que a legenda diz ter-lhes sido roubado. Quando andava a pesquisar imagens para o seu livro sobre a arte e a tradição portuguesa de tricotar, Rosa Pomar encontrou esta…

e foi precisamente aqui que tudo começou, com uma circunstância feliz. «estava a dar um curso de malha e uma das minhas alunas, editora da civilização, disse que gostava de publicar um livro sobre o tema».

rosa, que faz malha desde os sete anos (adolescência incluída) e usa sob as botas alentejanas meias feitas por si, além de ter essa autoridade técnica e moral sobre a matéria, já andava a investigar um projecto mais consistente sobre a arte portuguesa de tricotar. faltava-lhe a pesquisa de fontes. o facto de ter uma licenciatura em história e formação em artes plásticas motivou-a. «não concluí a minha tese porque o meu orientador entretanto morreu e não queria voltar a ela, mas andava cheia de vontade de voltar a estudar. queria perceber o que já se tinha escrito sobre malha». voltou à torre do tombo e à biblioteca nacional e fez um protocolo com o museu de etnologia onde esteve vários meses a estudar as colecções. as segundas-feiras – em que a retrosaria, onde vende tecidos e lãs «numa lógica gourmet», está fechada – rosa pomar dedicou-as à investigação.

além de pesquisar as fontes documentais, partiu com o marido, tiago pereira, autor do projecto ‘a música portuguesa a gostar dela própria’, literalmente para o terreno. neste caso, para os locais de norte a sul do país e ilhas, onde ainda existe o ciclo de produção da lã e manufactura de vestuário. um levantamento que serviu para a construção do livro e que alimenta um projecto a meias do casal ‘lã em tempo real’ (vimeo.com/laemtemporeal) com vídeos e testemunhos.

o livro que acaba de sair, com um grafismo absolutamente actual, faz a história do tricot em portugal e apresenta 20 modelos de inspiração tradicional. ou seja, tem uma vertente histórica e etnográfica (a autora assegura que só em portugal se faz malha com o fio à volta do pescoço ou preso a um alfinete ao peito) e serve igualmente de guia para os leitores fazerem as suas próprias peças de roupa.

um projecto passadista? nada disso. para rosa pomar faz muito sentido voltar aos arts & crafts tradicionais. «organizei o primeiro encontro de tricot em 2004 e foi muito divertido. é uma moda que deve ter começado lá fora há uns 13 anos e que nos eua continua em força».

além disso, os modelos apresentados são inspiradores, mesmo para os consumidores de moda prêt-a-porter. a dolce&gabbana tem feito colecções inspiradas no folclore russo, por exemplo. «os nossos estudantes de design e de moda continuam a repetir as imagens do galo de barcelos, das sardinhas e dos bordados de viana. porque a verdade é que as colecções de trajes regionais estão nas reservas dos museus. em lisboa não há nenhum sítio onde os trajes tradicionais estejam expostos», lamenta rosa pomar.

não que o assunto não interesse. os workshops da retrosaria, frequentados sobretudo por mulheres licenciadas que garantem encontrar na criação de camisolas a paz de espírito da meditação, continuam a esgotar. «mas é o de fazer meias, que é o mais difícil de todos, que esgota sempre. há 20 anos alguém imaginaria um workshop de meias esgotado?» e há, diz rosa pomar, um lado emocional importantíssimo «uma camisola feita por nós que vestimos a um filho tem um valor que o dinheiro não paga».

paralelamente à produção do livro, e no âmbito das pesquisas sobre os lanifícios portugueses, rosa criou a sua própria marca de lã «100% lã, 100% feita em portugal, da matéria-prima até ao novelo». é que, embora haja abundante criação de ovelhas no nosso país, «a lã que recebemos é, na sua maioria, importada da nova zelândia. faz algum sentido comprar lã que vem do outro lado do mundo, com um impacto ecológico incrível?».

a razão para os lanifícios nacionais serem rejeitados é comum. «as pessoas criam ovelhas por causa da carne e do leite. a lã é um subproduto, sem valor comercial porque o preço da tosquia é superior ao valor da venda da lã». e, embora a valiosa lã merino que vem dos antípodas ou criada no alentejo, seja mais macia, «não há nenhum motivo para desperdiçar a lã das 13 raças de ovelhas que existem em portugal». mesmo os novelos que saem das fábricas portuguesas são feitos com matéria-prima importada. «a minha luta aqui na loja é que as pessoas percebam o impacto que podem ter quando tomam uma decisão tão simples como comprar um novelo». é importante não dar ponto sem nó.

telma.miguel@sol.pt