Alexandre Silva. “Neste momento, é cabeça na lua mas pés na terra”

Aos 40 anos, o chef Alexandre Silva lidera restaurantes icónicos da cidade de Lisboa como o Loco e o Fogo. A pandemia veio fechar as portas – temporariamente – aos projetos, e foi preciso ‘passar a ouvir a razão’, para manter-se à tona. Para a (re)abertura, há otimismo quanto baste, mas mantém-se alguma apreensão.

Alexandre Silva. “Neste momento, é cabeça na lua mas pés na terra”

Quais foram os golpes mais duros que esta pandemia fez nos seus restaurantes?

O início da pandemia foi muito duro, no sentido em que, como não estávamos à espera, o choque foi demasiado grande. Estivemos ali uns 15 dias, quase três semanas, sem saber o que é que tinha acontecido. Sem perceber qual era a solução que tinha para poder salvar a empresa, e esse foi o maior desafio. De repente as coisas funcionam muito bem, a empresa que tenho tem um investimento muito grande no Fogo, onde colocámos o que tínhamos e o que não tínhamos porque acreditávamos e, quando nos apercebemos que íamos conseguir seguir em frente, acontece isto no mundo e fiquei sem chão. Fiquei sem chão, porque não via solução. Para onde olhasse, era tudo negativo, e isso bloqueou-me de tal maneira que nem conseguia pensar em soluções. Fechei-me, não queria falar com ninguém… mas com o Zoom, as pessoas começaram a entrar em contacto, e comecei a perceber que tinha de ser eu a pôr um travão neste meu bloqueio e seguir em frente. E comecei com a atitude que é precisa, esquecer o lado emocional e ir para o lado racional, porque a emoção nestes casos mata-te mais ainda.

Como se faz essa mudança?

Se estás debilitado, a emoção é o suficiente para te matar. Assim que apostei no lado racional… Isso fez com que conseguíssemos dar a volta por cima. Ainda há muita coisa que vem aí, e o pior ainda não veio, que é quando tivermos de começar a pagar a fatura que tivemos de assumir para salvar a empresa, o trabalho todo que se colocou nestes espaços, essa vai ser a parte mais difícil… E é por isso que não deito ainda os foguetes, mas também foi por isso que pelo menos não vamos morrer na praia. É preciso que cada jogada que se faça seja a jogada certa, para depois no fim não nos prejudicarmos por uma jogada mal feita no início. Muito racional, pouco emocional, naquela mania que os cozinheiros têm, é que somos cozinheiros, não somos gestores [risos]. A gestão vem por acréscimo e temos de aceitar, mas a emoção nos cozinheiros fala sempre mais alto. Claro que continuamos a respeitar quem trabalha connosco, mas às vezes é preciso dizer que não. Quando dizias que sim sempre, e neste momento se calhar dizes mais vezes não do que sim, é para aguentar.

Em 2019, numa entrevista, dizia: «Um dia que isto acabe tudo, o que vai ser destas pessoas? Estamos a apostar no Fogo, sem ter certezas nenhumas. Se isto não resultar, se calhar vai ser muito complicado». O Fogo abriu poucos meses antes do primeiro confinamento. Chegaram a temer que isto se tornasse realidade com o confinamento?

No primeiro dia em que fechámos as portas, sem saber muito bem no que ia acontecer, eu nunca acreditei muito… Quando isto começou os colegas diziam que era só 15 dias, mas eu nunca acreditei muito nisso, até porque a história contava que não era em 15 dias que se salvava uma pandemia. Quando a OMS decretou a pandemia, percebemos que as cosias iam demorar tempo a acontecer, apesar de estarmos no século XXI, em que as coisas acontecem depressa. O Homem é o Homem, e é igual pelo menos desde o século XIX, e há coisas que demoram muito tempo a acontecer. A partir do primeiro dia, percebi que poderia perder tudo. Esteve muito próximo de as coisas virem por água abaixo. Aí percebi que as coisas ficaram muito difíceis, e foram ainda mais pesadas quando se decretou a pandemia. Se já eram muito difíceis, passaram a ser impossíveis até me conseguir organizar e adaptar a empresa às necessidades e à situação.

Como se lida com uma equipa de cozinheiros, empregados e um staff que acaba de começar a trabalhar, e vê o emprego interrompido ao fim de quatro meses?

Lida-se mal. O Fogo teve azar desde o início, no sentido em que a obra demorou mais um ano e meio do que devia ter demorado. Depois abriu durante dois meses e meio e, entretanto, fechámos portas. Depois abrimos mais três meses, e voltámos a fechar portas. O Fogo no meio destes dois anos de operação esteve aberto seis meses, e isso tornou tudo muito difícil de superar e de ser positivo em relação ao restaurante. Uma coisa é ter um restaurante que já pôs o ‘stamp’ na praça, que já tem um carimbo, que as pessoas já conhecem, outra coisa é um que acaba de abrir, depois fecha, abre e fecha, com mudança de horários todas as semanas… Isso rebenta com o negócio todo, e é muito difícil de gerir e ser positivo e otimista quando tudo isso acontece. Parece que andamos na rua com uma nuvem a chover-nos em cima. É difícil de ultrapassar e, por muito que estejas organizado e acredites, parece que estás sempre a medo. Ando sempre a olhar por cima do ombro, e tenho sempre medo de fazer o investimento que quero fazer, porque numa semana corre bem, e vamos naquele embale, mas pensamos ‘calma’ que pode andar tudo para trás. Depois o António Costa falava ao país e olhamos para trás, vemos as reservas a baixar… Há muita coisa… É como se fosse a bolsa, e é difícil de gerir as expectativas de quem trabalha contigo, o medo e a ansiedade que têm. É perfeitamente normal. 

A pandemia obrigou a cortes no staff?

Na minha empresa, 60% teve de sair. O Mercado da Ribeira está fechado, o Loco só abriu a 4 de maio, só tinha o Fogo aberto… A começar muito devagar. Tive de reduzir, senão a empresa não ultrapassava isto… Agora, quando reabrir [o Loco reabriu na última quarta-feira, dia 5 de maio], começamos a contratar colaboradores para, espero eu, que muitos possam fazer face ao que vai aparecer… Mas é sempre uma incerteza muito grande. Atenção que sou uma pessoa muito positiva e otimista, um empreendedor é otimista por natureza, e põe-se a fazer coisas que ninguém acredita… É como o Loco, só eu é que acreditava nele, e eu sou muito otimista, e quando acredito numa coisa, levo-a até ao fim, e até agora tem resultado… Mas, a partir deste momento, é preparar o terreno para fazer face para o que acontece no caminho, e preparar a empresa para que, se daqui a uns anos, algo acontecer outra vez, não ficarmos sem chão.

O que se aprende e o que se faz para manter o chão intacto?

Eu aprendi duas lições grandes. A primeira foi ouvir a parte racional da história, porque a parte emotiva pode prejudicar. A emoção prejudica as pessoas quando o outro lado não corresponde. Acontece isto na vida amorosa e na vida empresarial é igual… A emoção pode estragar uma relação. Há sempre uma parte que vê de uma forma e outra que vê de outra e, aqui, a emoção teve de ser posta de lado. Tem de haver emoção sim, mas tem de ser balançada com a parte racional. Terror sem amor não leva a parte nenhuma, e esta é a parte racional, mas também só a emoção não leva a lado nenhum. A segunda é que temos de fazer com que as empresas tenham um fundo de maneio para fazer face a tudo o que aconteceu. A maior parte das empresas não tinha dinheiro para pagar os ordenados no mês em que entrámos em confinamento. Era surreal, não cabe na cabeça de ninguém, olhando para trás não se percebe como é que uma empresa não tem para pagar o mês.

Salários, impostos, rendas…

E os impostos… Desde que fechamos até agora andamos a pagar impostos sobre tudo, e a empresa tem de se preparar para isso. Isto está feito para que as empresas invistam aquilo que ganham, e isso foi o que fizemos, o que ganhávamos e mais alguma coisa… E isso também foi um problema. É pensar que temos de ter a face emocional e racional balançadas, e estar preparados para pensar que a empresa pode ter de estar pelo menos quatro ou seis meses fechada e sobreviver. Se tivermos isso preparado, tenho a certeza que será muito mais fácil de gerir a mente, porque a mente é que manda nisto tudo, e será mais fácil olhar e, não propriamente ver a luz ao fundo do túnel, mas saber que ela não vai desaparecer. No meio disto tudo, as empresas que não tinham para pagar o salário desse mês, e ainda assim conseguiram sobreviver, se tivessem o suficiente para se manter seis meses fechados, teria sido completamente diferente. Eu, enquanto cozinheiro, só consigo criar se tiver a cabeça dedicada à criação, se estiver preocupado com como pagar impostos ou ordenados não dá para criar nada. É preciso preparar as empresas de restauração de autor, e que os pilares criativos estejam com a cabeça segura. É como estar chateado em casa porque tivemos uma discussão ou porque algo não correu bem, e ir para o trabalho assim, acabamos por não conseguir fazer nada.

Que expectativas tem a partir de maio, com o fim do desconfinamento e o regresso aos restaurantes?

Vamos fazer aquilo que íamos fazer no primeiro confinamento. Passo a passo, oferecer mais do que aquilo que os clientes já tinham. Mais dedicação e criatividade, trabalhar para esse fatos, porque é isso que vai fazer a separação. A experiência em si na cozinha de autor é muito importante. Quando as pessoas vão a um restaurante de autor, querem sentir uma experiência… Os restaurantes estão a começar devagar porque as pessoas também andam devagar, um pouco a medo… Será muito difícil, num curto espaço de tempo, que as pessoas voltem à vida normal num estalar de dedos. É preciso mudar muita coisa, é preciso haver muita verdade e muita segurança no meio disto tudo… E é isso que vamos começar a fazer, aliás, continuar a fazer, que é optar pelo fator ‘wow’, e ao mesmo tempo sermos ponderados em tudo o que tem a ver com o restaurante. Sei que o investimento será sempre feito por completo, mas à medida que as coisas vão sendo também construídas, irá sendo maior. Não posso ter um restaurante a trabalhar a 50% de ocupação e investir a 100%, tenho de investir também a 50%… E é isso que vamos fazer. As coisas vão crescendo, e vamos acompanhando esse crescimento, é como as crianças, vamos comprando  roupa maior para o restaurante à medida que cresce… 

Que receios tem sobre a perceção dos clientes?

Não quero que as pessoas venham para o restaurante e sintam que a equipa é menor, ou que o produto é pior. Não é isso que está a acontecer. Temos um produto melhor, felizmente ou infelizmente, porque tivemos mais tempo para pensar sobre tudo o que tínhamos dentro dos restaurantes. Métodos de trabalho, trabalhos com produtores diretamente… Tivemos tempo para criar isso tudo, para discutir, para ouvir as pessoas, e isso também tem coisas boas. Isso foi muito positivo. Às tantas estávamos num ritmo tão acelerado, que tu punhas para trás as coisas que eram menos importantes, e que, afinal, não eram assim tão menos importantes, como, por exemplo, ouvir as pessoas e pôr tudo em contexto. Aproveitámos isso, reunimos as equipas, falamos com os pilares desta empresa, que são alguns, e percebemos o caminho, porque isto, francamente, abalou-me bastante. Por muito que tenhamos conseguido estar melhor e dar a volta por cima, é importante aceitar ouvir as outras pessoas e não pensar sozinho, porque, se calhar, é melhor para controlar a jogada, e perceber se é isso que queremos fazer… O melhor que aconteceu no meio disto foi mesmo isso, perceber quem está connosco e quem não está, ficar mais perto das equipas… Foi uma maneira de percebermos quem estava connosco e quem lutava por isto sem vontade. Isso foi muito importante, sentir que posso confiar nas pessoas e, no futuro, com um processo de gestão de carreira, é fulcral ter esta informação.

Como vê o regresso das pessoas aos restaurantes neste desconfinamento?

Existem vários perfis de clientes neste sentido. Os clientes que voltam como se não tivesse acontecido nada, e os que voltam com medo, que ligam a perguntar se temos esplanada, a proximidade entre as mesas… há pessoas que têm muito receio e outras que não querem saber. É assim. É como quando dispara um alarme de incêndio, há pessoas que ficam aflitas e outras que não querem saber. Eu respeito isso, e cada um é como cada qual, mas noto que em todos eles, querem a experiência perfeita. O pensamento tem sido, no entanto, para uns e para outros, ‘Já que vou, porque tenho vontade de ir ou porque alguém lá de casa precisa de ir e até tenho de ir, mas já que vou, quero ter a experiência perfeita’, porque não vão gastar 6 euros por refeição ou 10, e por isso tem de ser perfeito. Esta é uma característica comum aos dois perfis de cliente…

Se o regresso já está a ser lento, na cozinha de autor é ainda mais?

Isso sempre aconteceu na cozinha de autor. As pessoas passaram a colocar uma ida ao restaurante como quem vai a um espetáculo, e tem de valer a pena. Mas cada vez mais as pessoas querem um serviço perfeito, a experiência perfeita, porque é só aquilo. As pessoas vão ao restaurante e depois vão para casa. Antes até iam ao restaurante, o serviço corria mal ou algo corria mal, mas depois iam pela noite fora e compensavam, bebiam um copo noutro sítio e já nem se lembravam do jantar. Hoje em dia não há copos com amigos, não há saídas à noite. Hoje em dia vão ao restaurante e é isso. E felizmente temos sorte com isso. Sinto-me privilegiado em ter um restaurante e não uma discoteca. Sinceramente não sei como estará a cabeça de um empresário de discotecas e bares… Deve estar a ser muito difícil e sinto-me privilegiado por isso.

De parte do Governo, os apoios chegaram, ficaram pelo caminho, ou chegaram mas não foram suficientes?

Bom, eu não quero ser ingrato, até porque não sou. A nossa empresa e muitas, quase todas, sobreviveram a isto tudo graças ao que o Governo transformou para apoiar as empresas. Não estou a defender o Governo nem os empresários, quero ser justo. Claro que as coisas demoraram tempo, houve muita ansiedade naquele primeiro mês de pandemia pelo mundo fora… e, se as empresas não estavam preparadas, como é que o Governo ia estar preparado para isto? Eu não queria estar no papel deles também, apesar de achar que poderiam ter existido coisas que poderiam ter facilitado a vida aos empresários e às pessoas… tal como decisões mal executadas. Todos erramos, mas este é um assunto muito sério… É o país e o mundo. É muito mais sério do que outros problemas mais pequenos, mas a verdade é que a Perfume de Laranjeira [empresa do chef Alexandre Silva] pediu apoios ao Estado, andamos a sobreviver durante este período todo graças à micro gestão que fizemos, graças aos outros cinco trabalhos que tenho e ao apoio do Estado. Sem o Estado isso teria sido impossível. Sem o lay-off, o apoio à retoma, os milhões de euros para apoiar as empresas, que vamos ter de pagar a partir de dezembro, que não sabemos muito bem como vamos pagar…

É um sabor agridoce, saber que essa conta chegará no fim do ano?

Ainda não é altura de falar sobre como vamos pagar a fatura. Sabemos que vamos ter de pagar, agora é preciso saber se vai ser toda, só uma percentagem, se as ‘bazucas’ vão realmente servir para ajudar as pessoas. E que isto tudo passe e, depois, possamos olhar para trás e perceber que foi feito um esforço, que foi uma lição de vida, até porque isto na verdade é uma comunidade, e há sempre ‘handicaps’, e é mesmo assim.

O que espera destes apoios?

Era importante que nos milhões de euros pedidos pudesse haver um fundo perdido, como houve no turismo, existirem algumas facilidades porque, caso contrário, será difícil as empresas conseguirem pagar a fatura se o crescimento não for tão rápido como se espera, que pode não ser. Pode não acontecer para o ano, pode ser só daqui a 3 anos, e se for só daqui a 3 anos vai ser muito difícil pagar já.

Que expectativas tem para este regresso?

Não tenho expectativas. Tenho de esperar para ver como vai acontecer, quando as pessoas voltarem a viajar, e voltarem ao país… Até lá, estarei apreensivo, depois vamos ter ferramentas para ver o que vai acontecer. O Loco é um restaurante pequeno, o Fogo é um pouco maior, apesar de trabalhar com muitos portugueses. O Loco, no entanto, não é assim, é preciso esperar que as fronteiras abram e tentar perceber as reações no mundo à vacinação e tudo mais, e a liberdade que as pessoas vão adquirindo, e isso é que vai dizer o que acontecerá. Até lá, estou muito apreensivo. Já me enganei quando disse que não ia haver segundo confinamento e ninguém ia aguentar, e a realidade é que houve, e muitos aguentaram, mas pode haver um terceiro confinamento, e uma terceira vaga, e por isso não deito foguetes já.

O take-away foi um dos salva-vidas dos restaurantes, mas no caso da cozinha de autor, como se mantém intacta a experiência em casa?

O take-away não se podia aplicar aqui. Quando comecei a ter a parte racional do meu lado, comecei a olhar para os números e perceber que, se tivéssemos stocks muito grandes, não ia ser bom. A primeira coisa que fiz foi tentar vender tudo o que tínhamos em casa, tinha de despachar tudo. Não queria congelar, então fui tentar vender e consegui vender todo o produto alimentar.