Lisboa-Porto. E um povo farto de golos

A rivalidade enorme entre seleções das duas cidades – em que desporto fosse – teve uma tarde suprema num jogo de futebol nas Salésias, em 1940: 13-2.

A rivalidade entre Lisboa e Porto vem lá do início dos tempos e propagar-se-á, provavelmente, muito para além do fim dos tempos. Talvez seja essa a sina das capitais e das segundas cidades de cada país. Por cá, muito cedo resolveu-se levar para os campos, para as estradas e para as pistas, esse antagonismo inigualável. De um momento para o outro havia torneios de atletismo entre seleções de Lisboa e e do Porto, jornadas ciclísticas entre equipas de Lisboa e do, jogos de futebol entre Lisboa e Porto.

E era precisamente aqui que eu queria chegar.

Reparem que a engrenagem de desafios de futebol entre seleções de Lisboa e Porto data de 1914, ao tempo da I Grande Guerra. O primeiro teve lugar em 28 de Abril e Lisboa desfez os seus adversários por nada menos de 7-0. Na verdade, as grandes goleadas pertenceram na sua maioria aos lisboetas. Ora vejam: 28 de janeiro de 1917 – 11-1; 6 de junho de 1923 – 8-1; 5 de fevereiro de 1928 – 8-2; 7 de janeiro de 1940 – 13-2.

Nas Salésias, nessa tarde de Janeiro, disputava-se o 36.º de um Lisboa-Porto que teria 44 edições. O relvado era um mar de água, a bola prendia-se nas poças, tornava-se por demais evidente que a equipa que se adaptasse melhor à intempérie ficaria desde logo em vantagem. Quanto a isso, o resultado não deixa dúvidas.

Se a equipa lisboeta contava com o enorme Peyroteo, gigante de Humpata, e com outros craques como os argentinos Scopelli e Tarrio (de Belenenses), Azevedo (Sporting), na baliza, e Mariano Amaro (Belenenses), Francisco Ferreira e Espírito Santo (Benfica), o Porto respondia com Guilhar, António Santos, Lemos e Pinga (todos do FC Porto). Tudo menos a tempestade que caíra sobre a capital prometia um jogo de truz. E foi isso que aconteceu. Embora não da forma que os presentes estariam estavam à espera.

Caindo como pinos

Apesar das chuteiras de travessas, os jogadores escorregavam a torto e a direito. «Os jogadores estatelam-se cm frequência no terreno, tomando as posições mais grotescas – e isto defende os que dizem que um tempo como o de hoje não é próprio para a prática do futebol. Tão enlameados se encontravam os jogadores que tiveram de mudar de equipamento ao intervalo. Assim, Lisboa reapareceu com um vermelho desbotado e o Porto todo de branco».
A última vitória do Porto datava de 1934 (2-1), já lá iam portanto dez anos impiedosos. Acrescentemos que a lista dos jogos entre as seleções de Lisboa e Porto, a superioridade dos sulista foi de tal forma indiscutível que, no total de 44 jogos, o Porto obteve apenas sete vitórias, arrancado igualmente dois empates – 1-1 em Fevereiro de 1921; 0-0 em Janeiro de 1924.

Como é lógico, o 13-2 das Salésias trouxe consigo a consideração dos críticos em relação à indiscutível superioridade de Lisboa: «A sensação de cansaço físico por parte dos jogadores corresponde ao cansaço do público em ver meter ‘goals’», glosava um cronista da época. E concluía: «O desafio de hoje, não podendo, dentro das condições em que decorreu, servir de pedra de toque ao valor das duas seleções, demonstrou que o futebol dos jogadores da capital é superior aos da cidade Invicta, mercê dos melhores valores individuais que representam cada equipa e de um melhor afinamento de conjunto, obtido provavelmente pela influência de treinadores estrangeiros que em Lisboa exercem a sua atividade».

Molhados como pintos, camisolas coladas ao corpo, jogadores de Lisboa e Porto abraçaram-se sem azedumes. Em dezembro seguinte, Lisboa voltaria a vencer, desta vez por 6-3. Um hábito que nunca perdeu…
No dia 9 de abril de 1944, Porto e Lisboa defrontaram-se no Estádio do Lima que recebeu, por sua vez, uma enchente digna de reparo. Desde cedo que os guarda-redes Azevedo, por Lisboa, e Barrigana, pelo Porto, foram obrigados a entrar em ação. Na frente de ataque Lisboeta, Peyroteo, Rafael e José Pedro, faziam a cabeça em água a Guilhar, Anjos e Pacheco.

Se tudo apontava para uma vitória curta de Lisboa, nos últimos minutos Rafael parecia ter sido invadido pela implacabilidade do demónio. Dois golos espetaculares, marcados na sequências de uma fileira de fintas, deixaram o resultado num triunfo de 6-1 para os da capital. Daí para cá, o gosto pelo jogos inter-regionais perdeu-se. Primeiro foi a II Grande Guerra. Depois, a seleção nacional ganhava espaço no calendários com os seus desafios de apuramentos para os Mundiais Europeus. Mas não houve rivalidade como aquela…