O divórcio de um casal com o poder de uma nação

Milhões de pessoas, nos países mais pobres do mundo, dependem da caridade da Fundação Bill e Melinda Gates, que agora fica em risco. «A nossa sociedade fez o erro colossal de permitir a riqueza para comprar a possibilidade de tomar decisões quase governamentais», notou um analista.

O divórcio de um casal com o poder de uma nação

Dois cidadãos americanos chatearam-se, já não acreditavam que podiam «crescer juntos como casal», mas quem treme são os países em desenvolvimento. Com o divórcio dos bilionários Bill e Melinda Gates – fundadores da fundação homónima, uma das maiores e mais influentes caridades do planeta, que tomou a seu cargo a erradicação da malária, poliomielite e da miséria infantil, tornando-se um dos principais atores no acesso a vacinas contra a covid-19 por países pobres, destacando-se também no combate às alterações climáticas, além ser um dos maior financiadores da Organização Mundial de Saúde (OMS), ultrapassado apenas pelos Estados Unidos e o Reino Unido – inúmeros projetos humanitários, dos quais dependem milhões de pessoas nas condições mais precárias, agora temem pelo futuro do seu financiamento.

É certo que o casal prometeu manter a Bill & Melinda Gates Foundation como a conhecemos, garantem que não deixaram de «partilhar a crença nessa missão», que «vão continuar a trabalhar juntos para moldar e aprovar as estratégias da fundação, a defender os assuntos levantados pela fundação, a decidir a decisão geral da organização». Mas quem garante que esse entendimento está para durar? Quem quer que já tenha terminado uma relação longa sabe como é complicado manter uma convivência saudável. Imagine-se quando disso dependem as vidas de tantos outros nas mãos – de facto, no que toca a organizações filantrópicas de casais divorciados, muitas vezes a solução é parti-las em dois, para evitar disputas conjugais. 

«O divórcio dos Gates vai fazer mais do que virar do avesso a vida da família. Vai ramificar para o mundo dos negócios, educação, saúde pública, sociedade civil, filantropia e mais além», notou Anand Giridharadas, autor do livro Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World, em declarações à Reuters. «Isto é porque a nossa sociedade fez o erro colossal de permitir a riqueza para comprar a possibilidade de fazer decisões quase governamentais enquanto cidadão privado».

Quando se falamos da riqueza de Bill Gates, fundador da Microsoft, falamos de riqueza a sério. A família conseguiu juntar uns inimagináveis 130,5 mil milhões de dólares, mais de 100 mil milhões de euros, segundo a Forbes – bem acima do PIB de países como a Croácia ou a Tunísia, segundo o Banco Mundial. No entanto, o facto é que, ao contrário de magnatas como Jeff Bezos, da Amazon, atual homem mais rico do mundo, Bill e Melinda decidiram derramar boa parte da sua prosperidade sobre o resto do mundo, doando 36 mil milhões de dólares, o equivalente a 30 mil milhões de euros, à sua fundação desde o seu lançamento, em 2000.

A mudança na perceção pública do nome Gates foi enorme. Há duas décadas, era associado a um comportamento monopolista, capaz de tudo para destruir a competição durante advento da internet, «impiedoso, predatório», com a reputação de «barão ladrão dos tempos modernos» descreveu Charles Lowenhaupt, consultor para os extremamente ricos, citado pelo New York Times em 2013. De um momento para o outro, Gates passou a ser visto como «uma força global para o bem». 

Caprichos e vidas

No mundo, ativistas e trabalhadores humanitários olham com atenção para o processo de divórcio dos Gates, que continua em boa parte secreto, ansiosos por saber se haverá dinheiro para os seus projetos. Os fundos prometidos pelo casal são menos certo do que seria de esperar – em 2010 declararam que doariam o grosso da sua fortuna, mas boa parte ainda não chegou e estes ainda podem mudar ideias.

«As pessoas temem que, quando um divórcio assim acontece, possa enfatizar a volatilidade à volta das doações privadas, pelo facto de serem tão dependentes dos caprichos de um casal», salientou Linsey McGoey, autora de No Such Thing as a Free Gift: The Gates Foundation and the Price of Philanthropy, à Associated Press. «Mostra claramente que, como sociedade, somos demasiado dependentes dos caprichos de pessoas ricas no que toca a voluntariamente distribuir a sua riqueza excessiva». Não se trata de uma queixa nova em relação à fundação Bill e Melinda Gates. «Temos uma fundação com mais recursos que 70% das nações a tomar decisões sobre políticas públicas e prioridades públicas, sem qualquer discussão ou processo político», notou Pablo Eisenberg, da Georgetown Public Policy Institute, à Nature, em 2007, ecoando outras vozes céticas. Mas, face às consequências do divórcio, provavelmente será um pensamento muito mais recorrente.