Os nababos

A cena passou-se há poucos dias na cimeira social do Porto – a propósito e para não variar sem resultados dignos de registo – e António Costa, involuntariamente, porque é notório que não se apercebe de nada, virou as costas a von der Leyen e seguiu caminho.

Não consegui perceber o que Ursula von der Leyen deixou cair, mas toda a gente pôde ver que António Costa, apesar de estar mesmo a seu lado, não viu e mesmo quando a presidente da Comissão Europeia se agachou para apanhar do chão o que lhe caíra da mão o primeiro-ministro português não fez qualquer gesto ou movimento, mesmo que fosse inútil – se bem que nunca o seria, porque sempre revelador de gentileza, cortesia ou boa educação.

A cena passou-se há poucos dias na cimeira social do Porto – a propósito e para não variar sem resultados dignos de registo – e António Costa, involuntariamente, porque é notório que não se apercebe de nada, virou as costas a von der Leyen e seguiu caminho.

Obviamente, não se tratou de um incidente protocolar nem coisa que se pareça, mas tão só de deselegância ou falta da tal gentileza, cortesia ou boa educação – neste caso, o que releva é não ter visto.

Há um mês, por ocasião da visita dos responsáveis máximos da União Europeia à Turquia, correram mundo (e o vídeo tornou-se viral nas redes sociais) as imagens de dois nababos recostados nos respetivos cadeirões enquanto distinta senhora, que não conteve uma exclamação de incredulidade, permanecia de pé à espera de um inexistente terceiro cadeirão.

Recorde-se que dias antes a presidente da Comissão Europeia criticara a Turquia por ter abandonado a Convenção de Istambul – convenção global de prevenção da violência contra as mulheres e crianças.

Von der Leyen acabaria por sentar-se num sofá lateral, engolindo em seco e dando «prioridade à substância da visita em relação ao protocolo», como explicaria o porta-voz da Comissão Europeia Eric Mamer, acrescentando que von der Leyen deu instruções ao seu staff para se assegurar que «um incidente como este não volta a acontecer».

Até porque, como confessaria mais tarde, nunca se sentiu «tão magoada e sozinha».

Sou a primeira mulher a presidir à Comissão Europeia. Sou a presidente da Comissão Europeia, e é assim que esperava ser tratada quando visitei a Turquia há duas semanas. (…) Mas não fui. Não posso encontrar nos Tratados da UE qualquer justificação para a forma como fui tratada, pelo que tenho de concluir que aconteceu porque sou uma mulher», comentou von der Leyen nas suas primeiras palavras públicas sobre o caso ‘Sofagate’. A alemã interrogou-se sobre o que teria acontecido «se usasse fato e gravata» e salientou que o sucedido nada teve a ver «com disposição de assentos ou protocolo», mas sim «com os valores que a União Europeia defende», como a igualdade de género. E lembrou a sua condição de presidente da União Europeia, que lhe confere uma «posição privilegiada» para se fazer ouvir, ao contrário de «milhões de mulheres que são magoadas todos os dias, em todos os cantos do planeta».

Nas redes e mundo fora, as críticas multiplicaram-se em relação a Recep Erdogan. Mas Charles Michel – que foi, aliás, o primeiro a sentar-se – também foi grosseiramente desrespeitoso.

A imagem dos dois sentados com von der Leyen de pé é tão vergonhosa e triste como a outra, depois, em que a presidente da Comissão Europeia surge relegada para um sofá lateral.

Foi, aliás, preciso uma reunião de quase duas horas à porta fechada dos líderes das várias famílias políticas no Parlamento Europeu, incluindo o presidente David Sassoli, para Charles Michel solenemente pedir desculpa a von der Leyen.

Michel justificou que, perante o «desplante diplomático» de Ancara, não reagiu nem se levantou para não estragar «uma viagem importante que há muito se preparava».

A verdade é que Charles Michel só deu conta do que se passava quando já estava sentado. Como é evidente pela simples observação das imagens e como mais se comprova pelo despropositadamente descontraído gesto de esticar as pernas.

Ou seja, mais um daqueles que ‘não viu’, ‘não reparou’ ou ‘não deu conta’, como tantos que dão encontrões à velhinha que demora mais um pouco a subir para o autocarro ou que fecham os olhos e fingem que dormem com os auscultadores enfiados nas orelhas para não cederem o lugar à grávida que acaba de entrar no metropolitano à pinha.

Fosse pelas regras do protocolo, da cortesia ou da boa educação, Charles Michel nunca sequer deveria ter-se sentado estando von der Leyen em pé.

O jornalista inglês John Battersby, na muito recente inauguração do busto de Nelson Mandela no Taguspark, entre as várias histórias que contou do líder histórico do ANC, da luta contra o apartheid e figura maior da história universal, realçou: «Mandela nunca começava uma conferência de imprensa sem que todas as senhoras presentes estivessem sentadas».

Ninguém fez mais pela igualdade do que Mandela.

E a igualdade também passa pelo respeito pela diferença. E por não confundir igualdade de género, de oportunidades e de direitos, com a ausência de regras, de boas práticas, de gentileza, de cortesia, de boa educação na sã convivência entre homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e mais velhos.

Não pode valer tudo. E não vale não ver.