Farmácias. Eleições com ANF à beira da falência

O passivo da Associação Nacional de Farmácias já ultrapassa os 400 milhões. Paulo Cleto Duarte convocou eleições antecipadas, ainda anunciou a recandidatura mas saiu da corrida. Garante que a sua saída nada tem a ver com as críticas do fundador ANF, João Cordeiro, mas está em cima da mesa uma auditoria às contas da instituição.

A Associação Nacional das Farmácias (ANF) vai a eleições (antecipadas) numa altura particularmente sensível, sobretudo atendendo à sua situação financeira. Sabe o Nascer do Sol que a dívida da ANF ronda os 420 milhões, o que tem levantado suspeitas no meio e que poderá dar lugar a uma auditoria. Paulo Cleto Duarte, presidente da associação desde 2013, convocou eleições antecipadas, chegou a anunciar a recandidatura ao cargo, mas retirou-se.

No meio de toda esta polémica está um vídeo publicado no YouTube – e entretanto retirado – por João Cordeiro, fundador e presidente da ANF durante mais de 30 anos, que explica as ‘incoerências’ das contas, garantindo ao longo de cerca de 35 minutos que «é preciso acabar com este regabofe», e revelando estar arrependido de ter sugerido o nome de Paulo Cleto Duarte para seu sucessor na liderança da ANF.

No vídeo, o fundador da associação levanta várias questões sobre as contas apresentadas pela ANF – aprovadas com 99,5% dos votos – bem como o orçamento para 2021 e o plano económico e financeiro 2021-2032. «Porquê esta súbita necessidade num plano de emergência? Os números estavam nas contas, mas o relatório escondia a gravidade da situação. Os gráficos não correspondiam à dureza dos números. Marketing a mais e seriedade a menos», critica.

O antigo responsável não poupa as palavras: «As contas de 2019 evidenciaram que a ANF aumentou o endividamento em 25 milhões de euros. É obra. Aguardamos as contas de 2020». O Nascer do Sol sabe que esse valor aumentou consideravelmente em 2020.

João Cordeiro continua. «Só com as moratórias, a ANF e as empresas adiaram amortizações e juros em 22 milhões. Para onde foi todo este dinheiro?». Depois de ter pedido a Paulo Cleto Duarte informação necessária para poder analisar melhor as contas, João Cordeiro atira: «Não consigo compreender onde se gastou tanto. Insisto: é necessário e imprescindível  fazer uma análise rigorosa e independente».

 

‘ANF registou em 2020 contas equilibradas’

Questionado pelo Nascer do SOLsobre como é que a ANF chegou aos prejuízos, Paulo Cleto Duarte refere que a associação «investe os seus proveitos no desenvolvimento profissional, tecnológico e empresarial da rede de farmácias. Registou em 2020 contas equilibradas e, até, uma evolução positiva face a 2019». E acrescenta: «Já o universo de empresas participadas pela ANF registou globalmente um resultado líquido negativo, resultante de dois factos próprios na atividade empresarial: os efeitos da pandemia de covid-19 nos hospitais da CUF e as dificuldades de internacionalização da empresa de inteligência de mercado Health Market Research (HMR)».

Ao nosso jornal, o responsável avança ainda que as empresas participadas operam em mercados livres e concorrenciais. «Temos tido períodos de investimento, que nem sempre geram de imediato resultados positivos. Fruto da persistência e de uma estratégia bem definida, várias empresas geram hoje resultados positivos», garante.

Quanto às críticas levadas a cabo por João Cordeiro, o responsável diz vê-las com «tristeza» pela sua «forma e conteúdo», mas também «com serenidade». «Estou seguro da vitalidade da rede de farmácias e da ANF, que ultrapassaram com brilhantismo os anos mais difíceis de austeridade, conflitualidade e ataque externo».

Mas são os maus resultados que ditaram o afastamento de Paulo Cleto Duarte? «Isso é falso», garante. «Recebi centenas de mensagens para que me recandidatasse. A minha saída é o meu contributo para a serenidade do debate e a coesão da rede de farmácias». Para já, vai abraçar novos desafios profissionais até porque diz confiar no projeto de continuidade apresentado pelos atuais órgãos sociais, liderado pelo vice-presidente Nuno Vasco Lopes.

É Nuno Vasco Lopes quem assume a liderança da lista Todos pela Farmácia. O farmacêutico, que está ligado à ANF há 17 anos – primeiro com João Cordeiro e depois com Paulo Cleto Duarte – diz ter o conhecimento e a experiência necessários para o cargo.

Uma vez que esteve na direção anterior, o Nascer do Sol questionou sobre as contas. «A ANF e a sua estrutura não são imunes ao atual contexto económico do mundo, provocado pela pandemia, principalmente em áreas relacionadas com a prestação de serviços de saúde e algumas áreas de serviços». E acrescenta: «Nos últimos 20 anos, a ANF desenvolveu vários projetos com sucesso. Outros vão ser reestruturados para atingirem resultados, como é natural na atividade empresarial».

Mas então, como se chegou a prejuízos tão elevados? «A ANF tem estrutura e resultados equilibrados, mas algumas áreas da sua esfera empresarial necessitam ser reorganizadas», assume .

Questionado sobre se podemos falar em risco de falência, o candidato atira: «Claro que não», lembrando que  «a ANF é, economicamente, uma estrutura estável, que tem os seus pilares assentes em ativos muito sólidos». Sobre as questões levantadas por João Cordeiro, o farmacêutico diz apenas que são «naturais», lembrando que o fundador faz parte da lista adversária.

Quais são os planos para o futuro? Segundo o candidato, a estratégia da lista que encabeça, a Lista F, tem três propostas principais que passam por garantir um foco absoluto na atividade diária e sustentabilidade económica das farmácias; garantir estabilidade institucional e ainda a otimização da estrutura da ANF e de algumas áreas da sua esfera empresarial, com o objetivo de tornar toda a estrutura, mais focada e eficiente.

 

‘Parar sangramento’

A candidata que promete dar um ‘Novo Rumo’ à associação é Ema Paulino, que é também a primeira mulher a concorrer ao cargo.  «Um novo rumo que se impõe, primeiro porque a ANF necessita de um reequilíbrio ao nível das contas. Não especificamente em relação ao universo associativo mas ao empresarial que afeta, como é óbvio, as contas da ANF como um todo».

O objetivo passa também por implementar uma alteração estatutária que promova uma gestão «mais transparente e responsável» e, «associado a este momento difícil da ANF em termos financeiros, queremos propor um plano económico e financeiro robusto», em contraponto a um plano económico financeiro que foi apresentado pela atual direção demissionária e que considera «irrealista».

A candidata diz ainda ao Nascer do SOL que vai apresentar um plano económico financeiro alternativo, «com uma reestruturação financeira da dívida que seja comportável e  não afete o nível de serviço que a ANF presta aos seus associados» e, por consequência, à população.

Quanto ao endividamento, a farmacêutica revela que a informação já disponibilizada relativamente às contas de 2020 mostra que «continua a observar-se uma tendência crescente de endividamento que agora só não vai aumentar porque, na verdade, a ANF deixou de ter capacidade junto da banca para aumentar o seu financiamento». Para melhorar esta situação, será feita uma reestruturação da dívida. O alerta fica dado: «Se não houver essa reestruturação de dívida será muito difícil – para não dizer impossível – de corresponder a esses compromissos».

Ema Paulino não tem dúvidas que é preciso «parar com este sangramento financeiro e têm de ser tomadas decisões relativamente ao universo empresarial».

«Antes de haver esse alerta dado por. João Cordeiro não havia intenções sequer de dar um novo rumo ou de apresentar um plano alternativo. Não nos afigura provável que isso vá acontecer com esta lista de continuidade e daí até o nosso sentido de missão», apontando o dedo à lista adversária.

Caso vença as eleições, a lista de Ema Paulino vai levar a cabo uma auditoria às contas da ANF. «Temos que perceber exatamente o que aconteceu nos últimos anos para haver este aumento significativo de endividamento e porquê que não foram tomadas determinadas decisões atempadamente e que tipo de decisões é que foram mais negativas». diz.

Quanto à proposta de revisão estatutária, que será apresentada em Conselho Nacional, Ema Paulino justifica que o objetivo é evitar que situações como esta aconteçam no futuro e que pessoas que não estão preparadas possam estar na liderança das empresas sem que haja responsabilização das mesmas.

Recorde-se ainda que Nuno Vasco Lopes é presidente da comissão executiva da Glintt, que é deita pela ANF através da Farminvest.  E questionado pela TSF sobre eventuais incompatibilidade de funções, prometeu refletir sobre isso despois das eleições.

As votações para eleger quem sucede a Paulo Cleto Duarte na direção da Associação Nacional de Farmácias decorrem no próximo dia 29 deste mês, sendo que a votação poderá começar antes, a 19, por voto eletrónico.