O que o PR quis dizer quando meteu discurso na gaveta

Marcelo Rebelo de Sousa deixou António Joaquim Piçarra falar sozinho no STJ e guardou o discurso que tinha preparado. Mas não deixou de enviar o ‘recado’ ao Governo e à Oposição.

Em declarações ao Nascer do SOL, Marcelo Rebelo de Sousa partilhou que o discurso que tinha escrito não acrescentava nada de novo ao que tem vindo a dizer sobre a Justiça nos últimos dois meses e que optou por deixar a sala do Supremo Tribunal de Justiça e o púlpito da cerimónia de reabertura das instalações na Praça do Comércio apenas para António Joaquim Piçarra, o presidente do STJ que está a escassos dias da jubilação e de deixar o cargo correspondente à quarta figura do Estado. 

Seja como for, o Presidente da República estava com entrevista marcada para essa noite, quinta-feira, dia 13, na RTP, e aí, e mesmo que não tenha sido muito claro nas explicações que deu acerca de não ter falado à tarde, não deixou dúvidas quanto ao que pede ao Governo e aos partidos ainda nesta legislatura. 

Marcelo Rebelo de Sousa confirmou também ao Nascer do SOL que o «recado» foi claro e está dado: não entenderá – e provavelmente a maioria dos portugueses também não – que uma nova estratégia nacional de combate à corrupção não seja aprovada até julho, até porque o assunto tem vindo a ser abundantemente debatido por membros dos partidos através dos órgãos de comunicação social, com evidentes divergências entre eles e uns com os outros, o que leva a que muitos pensem que o tema dificilmente será debatido no Parlamento ainda nesta legislatura. A essa possibilidade o Presidente da República diz «Não».

«Penso que há todas as condições para que daqui até julho – e espero que não tenha de sobrar para a legislatura seguinte – avançar com este conjunto de iniciativas. O mundo político está motivado para esta matéria, e está motivado porquê? Porque os portugueses estão motivados» e os portugueses querem ver «resultados no combate à corrupção», reforçou o Presidente na entrevista à RTP. Na mesma em que não deixou de notar que todos os partidos têm propostas, a Associação Sindical dos Juízes tem uma proposta, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público já apresentou os seus contributos e o Governo avançou com uma Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, como novas medidas, tanto de caráter preventivo como punitivo. O Presidente da República aproveitou igualmente para lembrar que os fundos europeus estão a chegar e, não tendo diretamente a ver com corrupção, também não deixa de ter. 

Marcelo Rebelo de Sousa é o mais alto magistrado da mação e cabe-lhe a abertura formal do ano judicial, que chegou a estar agendada para Janeiro e foi sendo adiada devido à pandemia. Do Supremo Tribunal de Justiça disse ao Nascer do SOL que a data da cerimónia tem vindo a ser conversada com Belém desde novembro do ano passado. Esteve para ser, como o próprio Presidente admitiu na entrevista à RTP, nos últimos dias de Janeiro, mas a pandemia ressurgiu, a cerimónia foi adiada e o discurso do Presidente sobre o estado da Justiça também. 
Entretanto, aguardava-se pelo despacho de pronúncia da Operação Marquês por parte de Ivo Rosa, o que aconteceu em Abril, com ondas de choque do tamanho das que podemos ver no Canhão na Nazaré, perigosas e consequentes. O ex-primeiro-ministro José Sócrates tem o papel principal nesta peça jurídica de que faz parte também o ex-banqueiro Ricardo Salgado.

No entanto, e também porque as alterações legislativas no domínio da Justiça tendem a ficar muito associadas a casos – caso Operação Marquês/Sócrates, no que tem a ver combate à corrupção, e ao arrufo permanente entre os juízes Carlos Alexandre e Ivo Rosa, numa eventual reconfiguração do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) –, os agentes políticos, e perdidos em argumentos partidários, teimam em não se entenderem.

‘Há um problema claro de comunicação e perceção’

Em 13 de maio, a figura da jovem Rainha D. Maria II dominava a sala que acolheu as principais figuras do Estado: Presidente da República, primeiro-ministro, vice-presidente da Assembleia da República,  ministra da Justiça, procuradora-geral da República, bastonário da Ordem dos Advogados e tantas outras figuras relevantes – que ficaram tão silenciosas quanto a Rainha retratada a óleo sobre tela quando o único que falou na cerimónia de reabertura das instalações do Supremo Tribunal de Justiça, depois das obras que levaram mais de três anos e custaram cerca de quatro milhões de euros, foi o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Joaquim Piçarra.

Foi um discurso de balanço, com o qual tantos dos presentes concordaram, e, entre eles, Marcelo Rebelo de Sousa – confirmou-o mais tarde, e mais uma vez na entrevista à RTP, já que durante a cerimónia, tanto ele como o primeiro-ministro, afáveis e sorridentes um com o outro, como habitualmente, não se prestaram a declarações. 

No seu discurso, o Presidente do STJ reiterou algumas ideias em que tem insistido: «A Justiça tem que ser transparente e tem que saber comunicar», mas «nunca por vaidade ou como forma de promoção de qualquer agente e, muito menos, de forma errática, emotiva ou irracional».  

António Piçarra falou ainda da «arquitetura constitucional do nosso sistema de Justiça» que nos deixou «duas ordens de tribunais e distintos órgãos de gestão e disciplina dos respetivos juízes» – Piçarra foi vogal do Conselho Superior de Magistratura (CMS) entre 1998 e 2000 – e acrescentou que «a ação disciplinar do CSM tem sido cada vez mais efetiva». Admite que há dificuldades e que isso não é segredo algum e falou da «grande dificuldade» que é «a gestão dos processos especialmente complexos, especialmente na área criminal». Diz mesmo que «essa continua a ser a grande impotência do sistema». 

Mais adiante, falou dos debates «sobre a alteração na estrutura do Tribunal Central de Instrução Criminal», dizendo que não era «o momento nem o lugar para desenvolver estes temas», apelando «contra as soluções inconsequentes e erráticas» e contrariando a ideia de «encontrar atalhos punitivos». Quando ao facto de «nos últimos dois anos, muito se tem questionado, no espaço público, a razão da existência de apenas dois juízes» no TCIC, avançou que no ano de 2020 «menos de 20 instruções» foram distribuídas a este tribunal e que «nenhum tribunal do país tem números tão reduzidos ou sequer aproximados», para concluir: «Somar mais juízes a esse tribunal não tem sustentação numa lógica de boa gestão do sistema», porque «o Estado português não consente mais alterações e reformas irracionais». 

Aconteceu que antes do final desse mesmo dia houve novidades. 

‘Ticão’ acolhe TIC 

Ainda durante a tarde, e na mesma sala do STJ, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, garantiu aos jornalistas que o chamado ‘Ticão’ não seria extinto, e disse-o várias vezes, mesmo quando alguém lembrou que essa não era a opinião do Conselho Superior da Magistratura, sendo que, e ao mesmo tempo, também garantia: «Nada ficará como dantes». Falou das três opções que o Governo colocou sobre a mesa: o aumento do número de magistrados do TCIC; a incorporação no Tribunal de Instrução Criminal – ou pelo menos assim o foi entendido; e a possibilidade de serem criados núcleos deslocalizados do TCIC ao nível dos quatro ribunais da Relação.

Ao fim do dia, o Observador avançou com uma provável solução. «Tribunal Central de Instrução Criminal deverá acolher TIC de Lisboa» podia ler-se no jornal online, que acrescentava «o Governo não só recusa extinguir o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), como deverá reforçar as suas competências e deverá promover a transmissão de competências do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa para um novo e reforçado ‘Ticão’». Por sua vez, o ‘Ticão’ deixará de ter os dois tão controversos juízes, sós e amparados nas suas desavenças, para ficar com nove juízes, ou seja, mais sete juízes além de Alexandre e Rosa, distribuídos por duas secções, uma nacional e outra regional.

«Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude», são as palavras do Príncipe de Salina feitas literatura – e exemplo de vida – por Tomasi de Lampedusa, em O Leopardo. E era evidente que alguma coisa teria que ser feita com ou ao ‘Ticão’, até como a própria ministra o admitiu na Assembleia da República, era importante «do ponto de vista simbólico». 

O artigo do Observador lembra que o tribunal constituído em 1999, por um Governo socialista e com Vera Jardim como ministro da Justiça, foi criado no mesmo edifício jurídico que esteve na origem do Departamento Central de Instrução Criminal (DCIAP), e que nasceram – por imposição dos juízes – em função um do outro. A extinção de um levaria à extinção do outro. 

Questionada pelo Nascer do SOL, a ministra da Justiça não responderu em tempo útil. 

Quanto ao debate na Assembleia da República sobre o enriquecimento ilícito, injustificado ou oculto, o tal debate que tem de ser feito ainda nesta legislatura – e a não ser feito não será por falta de propostas mas mais por falta de consenso e de um evidente aproveitamento político em ano de eleições, as tais que sendo autárquicas têm uma dimensão nacional e que devem ter, por isso, leitura nacional, como lembrou o Presidente da República. 

Na semana em entrou no Parlamento a proposta do Governo com a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, o deputado socialista Jorge Lacão, em artigo de opinião publicado no jornal Público, escrevia o que pensa sobre o estado da Justiça. Por exemplo: «A eliminação do Tribunal Central de InvestigaçãõCriminal, definitivamente caído em descrédito enquanto instância instrumental do DCIAP, distribuindo-se as suas competências pelos juízos de instruçãõsediados nas sedes das Relações, com a particularidade de se exigir que a audiência instrutória e a correspondente pronúncia passe – no caso dos crimes mais graves do catálogo– a ter lugar em formação de tribunal coletivo» ou «a omissão só ajudará́às controvérsias, muitas delas estéreis». 

Na mesma edição, a antiga ministra da Justiça do Governo de Passos Coelho, Paula Teixeira da Cruz, tem um curioso artigo de opinião, em que escreve: «Se as propostas do PSD são as supra-referidas, nunca teremos as alterações muito importantes que são essenciais para o dia a dia do cidadão» e termina: «Como seria bom que a atual direção do PSD, de vez em quando, pelo menos, apresentasse trabalho digno desse nome. Mas deve ser pedir muito». E a atual direção do PSD, para esta área, tem um nome e um rosto: Mónica Quintela, que deu uma entrevista ao mesmo jornal uns dias antes. 

Com tudo isto, e com o que está para vir, o Presidente da República é capaz de não ter razão, os dois temas tidos como emergentes na Justiça, até pelo debate público que têm provocado, vão, muito provavelmente, ‘sobrar’ mesmo para a próxima legislatura.