Sagrada família

O conceito de família de hoje nada tem a ver com o de antigamente. 

Por Nélson Mateus e Alive Vieira

Querida avó,

Há dias para tudo e mais alguma coisa, Hoje celebra-se o Dia da Família. A ONU proclamou este dia para sublinhar a importância da família na estrutura do núcleo familiar e o seu relevo na base da educação infantil, reforçando a mensagem de união, amor, respeito e compreensão necessárias para o bom relacionamento de todos; e também para chamar a atenção para a importância da família como núcleo vital da sociedade e para seus direitos e responsabilidades.

Tudo isto é muito bonito! No entanto, o conceito de família de hoje nada tem a ver com o de antigamente. O homem era o chefe da casa e toda a família lhe devia obediência. As mulheres ocupavam um papel secundário e estavam sujeitas, entre muitas outras coisas, a levar um par de estalos dos pais, mesmo depois de casadas.

Era comum as crianças trabalharem. As famílias eram bastante numerosas. Os irmãos mais velhos tomavam conta dos mais novos, ajudavam nas tarefas domésticas e começavam a trabalhar cedo, pois o dinheiro era pouco. Era comum as crianças não frequentarem a escola, ou ficarem apenas com o ensino primário. 

Hoje o conceito de família é completamente diferente.

A família tradicional está em vias de extinção. Os casais separam-se e voltam a casar. Os filhos passaram a ser os meus, os teus e os nossos. Existem famílias monoparentais, existem famílias do mesmo sexo, famílias de adoção… No atual conceito de família, todos os membros colaboram nas tarefas domésticas, ajudam-se entre si e, normalmente, todos os seus membros trabalham ou estudam.

Nunca, como no último ano, foi tão desafiante viver em família. As famílias tiveram que se reinventar. Nunca estiveram tanto tempo juntas e sem sair de casa.

Tu és um belíssimo exemplo de família que nunca correspondeu aos padrões convencionais.

Gosto muito de ser teu neto.

Bjs e cuida-te.

 

Querido neto,

Como já te disse, para mim o mês de Maio não tem a ver com Fátima e também não me apetece falar da família. Para mim, Maio tem a ver sempre com Paris.

Vivi lá nos anos 60. Nessa altura virei costas à pátria e ao namorado e aterrei em Orly, sem saber o que fazer da minha vida.

Lembrei-me que a minha prima Maria Lamas vivia na Rue Cujas, mesmo ao lado da Sorbonne, e lá fui ter com ela. Fiquei no hotel onde ela estava, de quartos minúsculos, onde cabia a cama e pouco mais, paredes cheias de buracos, uma escada íngreme e em caracol  

Lá viviam exilados políticos e estudantes sem dinheiro vindos do fim do mundo. Quem não podia pagar o quarto ao fim da semana, fazia a limpeza dos quartos todos durante a semana seguinte.

Como te estou sempre a dizer, aquele lugar foi a minha verdadeira universidade.

Ali conheci o Jorge Amado, a Zelia Gattai, o Jorge Semprún, o Nicolas Guillén, o Neruda, e tantos outros. O quarto da minha prima era o lugar aonde todos acorriam. E as conversas não tinham hora de acabar.

No dia 1 de Maio de 1968 lembro-me de estar na rua a comprar raminhos de muguet, como era da tradição.

Dois dias depois caiu-nos uma revolução no colo.

O Quartier Latin ardia, os automóveis ardiam, toda a cidade ardia, e nós ardíamos pelo meio das barricadas gritando palavras de ordem como “é proibido proibir” ou “a imaginação ao poder”. Na Sorbonne, Jacques Higelin tinha colocado o seu piano, e ali se estabelecia um local de permanente delírio. 

Até que tudo teve de acalmar — mas nunca mais fomos os mesmos.

Regressei a Portugal: Maio de 68 tinha-me ensinado tudo aquilo de que eu precisava para poder lutar noutro país qualquer.

Mas fui lá voltando. A última vez que lá estive, Notre Dame estava a arder. Prometi a mim própria voltar breve, mas a pandemia cortou-me as voltas.  

Mas pertenço aos Amigos de Paris, e sou “madrinha” de uma gárgula da catedral. Assim que puder, vou conhecer a minha “afilhada”.

Bjs e cuida-te.