E, de repente, o Tejo ficou verde e o leão descobriu que é do povo

«A derrota é uma doença que só a vitória cura», escreveu Mário Filho. Acho que todos nós nos reconhecemos um pouco na vitória do Sporting neste campeonato: a vitória da simplicidade contra a farronca, da alegria contra a falta de educação… Poucas vezes houve um campeão tão absolutamente justo!

E, de repente, o Tejo ficou verde e o leão descobriu que é do povo

Afinal em que lugar fica a consciência? Procuro um pouco por toda a parte de mim mesmo e não sei responder. Invejo quem o sabe. Neste momento, se soubesse o lugar exato onde fica a consciência, iria lá meter uma mão serena e diria que ficava bem comigo mesmo ao ver como os adeptos do Sporting festejam o título que lhes era devido há tanto tempo. Não devido de dívida, porque não há dívidas que se cumpram no mundo ingrato que é o futebol, mas devido de justiça, a justiça que marcou um momento há tanto tempo perdido. Quem sabe onde fica a consciência, quem tem a felicidade de a ter encontrado, não deixará de sentir, neste momento, uma tímida e íntima alegria. Seja de que cor lhe bata o coração. Pouco me importa se o que escrevo chateie quem o lê: não é possível ser honesto, dessa honestidade universal que faz de nós herdeiros dos deuses ocultos que nos legaram a lei da liberdade, e não sentir, neste momento, uma alegria própria ou alheia com a vitória espantosamente verde dessa gente que soube, ao longo de semanas, de meses, merecer o som solene da velha bailarina cigana de Lorca largada à sua vontade por entre o povo que lhe exige ser encantado pela sua voz rouca que os manda não calar a alacridade.

Nelson Rodrigues foi, provavelmente, o maior cronista de futebol de todos os tempos. Fazia concorrência ao seu irmão, Mário Filho, que deu o nome ao Maracanã. Nelson Rodrigues foi um escritor formidável. E ponto. Nelson Rodrigues era do Fluminense de uma forma esbanjada. E, no entanto, um dos textos mais belos que jamais escreveu foi sobre o título de campeão carioca do Flamengo, o clube que era suposto odiar. Se houver quem ainda queira aprender algo na forma de frases construídas solenemente como as pirâmides do Egipto, leia-o: «Poucas instituições serão tão abrangentemente nacionais quanto o Flamengo – a Igreja Católica, sem dúvida, é uma delas, e talvez o jogo do bicho.

E olha que o Flamengo não promete a vida eterna e o enriquecimento fácil. Pelo contrário, às vezes mata de enfarte e, quase sempre, só dá despesa. Mas uma coisa ele tem em comum com a religião e o bicho: a fé!»

Ah! Dirão vocês, e o Sporting? Quem tanto exigiu da fé, quem tanto prometeu sem cumprir, quem tanta tristeza foi distribuindo atrás de tristeza até que a tristeza deixasse de ter o nome de tristeza e passasse a chamar-se desilusão? Mas havia alguma coisa para lá dessa frustrante acumulação de contrariedades? Era preciso esperar, diziam. Esperar, esperar sempre. E houve quem esperasse sem perder a esperança.

Onde fica a maldita consciência, pergunto eu, para que muito de nós possam fazer as pazes com ela? O Sporting é campeão, escrevo. E leio, depois, o que escrevo com a consciência que era algo que quase me esqueci de escrever. Nesse momento, reencontro-me com a injustiça. Todos os campeões continuarão a ser campeões até perderem a dignidade de o ser. Há 19 anos, estive no velho campo de Vidal Pinheiro antes deste se transformar numa estrumeira, escrevi para o jornal a crónica do Sporting campeão, vencedor do Salgueiros por 4-0, enviei tudo para a Redacção e viajei, lentamente, até Lisboa, retardado pelo movimento lento, lento, do autocarro que, na autoestrada, era rodeado e perseguido por dezenas de carros de adeptos que me enchiam os ouvidos de buzinadelas estridentes. O tempo passou a trezentos mil quilómetros por segundo desde essa noite que começou no Porto e acabou em Lisboa. Ou melhor: o tempo passou. E basta.

Dediquem-lhes silêncios

Palavras e palavras e palavras. O Sporting ganhou um campeonato e toda a gente fala tontarias gratuitas, puxando para si mesma méritos que não teve. Não há pachorra para rádios, televisões, caras conhecidas e desconhecidas que repetem ladainhas bacocas ao longo da madrugada. Há imagens recolhidas nas ruas, nas praças, nas avenidas. Lembro-me da autoestrada entupida, de não conseguir chegar a casa. Dezanove anos mais tarde. Dezanove anos mais cedo.

Desligo tudo. Preciso do silêncio para pensar. Preciso do silêncio para escrever. Precisávamos todos do silêncio para que se fizesse justiça ao campeão. Mas continuamos a querer viver de palavras bacocas e mazombas de campeões da inutilidade. Calem-se, por favor. Calem-se para que não se desvalorize o silêncio dos que desenharam em campo, sobre a relva, os triângulos e retângulos que conduziram aos golos, as esquadrias que os evitaram, a geometria euclidiana daquele rapaz que caminha sozinho de bandeira ao ombro, regressando a casa, no ponto mais alto do orgulho da sua solidão. Caminha sozinho sabendo que nunca caminhará sozinho.

«A derrota é uma doença que só a vitória cura», escreveu Mário Filho. Ou talvez tenha sido vice-versa, mas pouco importa agora. Há vitórias contra. E esta também foi uma vitória contra: contra a farronca, contra a soberba, contra a falta de educação e contra a ordinarice. Em seguida foi, igualmente, uma vitória a favor do risco, da alegria, de uma maneira correta de se estar no desporto e na vida, da ausência da vaidade grotesca. Foi, enfim, a cura da doença de um leão que parecia ter caído num estado comatoso e acordou no pleno regozijo da sua juventude reencontrada.
Reparem bem: ainda não há muito tempo os jovens do Sporting eram velhos. Tinham as costas mais dobradas do que as do Quasimodo de Notre-Dame. E os velhos, então, parecia terem sido retirados de museus ao abandono. Foi aí que veio a cura. Um rapaz de sorriso pronto e discurso divertido, pôs um ponto final num mundo onde toda a gente tinha pena de si própria, onde se inventavam justificações grotescas para o momento das derrotas e se erguiam fachos de campeão à mais vulgar das vitórias. Ruben Amorim falou com a voz de que ganhar é tão normal como perder e nenhum dos dois é irreversível. Ganhou o hábito de ganhar e não lhe atribuiu importância especial. Faz parte desse jogo onde a bola é a mágica senhora das paixões. E desvalorizando a importância das vitórias e das derrotas, agarrou-se às primeiras e esqueceu as segundas.

Coisas em que não acredito

Não acredito que não haja em cada um de nós um bocadinho desta satisfação verde.

Não acredito que não haja em cada um de nós uma sensação de vitória.

Não acredito que não haja algo de Sporting nos adeptos de todos os clubes, agora que o Sporting regressou ao lugar para que nasceu.

Talvez lhe chamem simplesmente inveja. 

Talvez não lhe chamem coisa nenhuma e engulam o fel da frustração.

«Rapaziada oiçam bem o que vos digo!», cantava a Maria José Valério que não ficou para ver o seu clube ganhar o campeonato. Oiçam e não ouçam, porque o Sporting é de Portugal, como se orgulha, mas lisboeta desde o mais fundo da sua alma de Campo Grande e Alvalade.

«Gritem todos comigo: vivó Sporting!»

Sporting para uns; Sportingue para outros.

É preciso conhecer-lhe a história. A longa história que começou a ser composta por um capitão que morreu sifilítico e se misturou com a filosofia dos viscondes que caiu em graça.

Ah, sim, o Sporting nasceu em berço de ouro. Todos sabemos isso.

No final de um encontro contra o Carcavelos, por exemplo, no campo do Lumiar, foi oferecido um finíssimo chá às senhoras presentes, realizando-se em seguida numa das grandes salas da casa do Exmº Senhor Visconde de Alvalade, o avô de José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, um banquete no qual estiveram presentes todos os jogadores, a Imprensa e os delegados da Liga de Foot-ball.

Ah! No Sporting vivia-se bem. Cáspite! Era de estalo!

Tão de estalo que, numa exibição de abastança à qual nenhum outro clube tinha acesso, o Sporting fazia questão de apresentar uma bola nova em cada desafio. Em determinado encontro, durante o qual choveu torrencialmente, chegou mesmo a apresentar uma bola nova no início do desafio e outra por estrear após o intervalo. Das bancadas choveram OHS! de surpresa e admiração.

Lembra-se a gente lá disso…

Estávamos ainda nos anos da monarquia, e haveria de fazer a ligeira distinção entre sociedade e fidalguia. 

Desde cedo, o Sporting pretendia assumir a sua costela elitista. Surge para os lados de Belas, onde Francisco Gavazzo realizava uns piqueniques, festas dançantes, e umas partidas de ténis e de foot-ball que reuniam, segundo a imprensa da época, «personalidades da melhor sociedade de Lisboa». José de Alvalade era decididamente um visionário.

Sonhava com um clube «grande entre os grandes». E propunha-se chamar-lhe Grande Sporting Club de Portugal.

Era preciso dinheiro? Problema resolvido: o avô deu-lhe 200 mil réis. E graças à carteira bem recheada de Alfredo

Augusto das Neves Holtreman, o Visconde de Alvalade, o Sporting nasce já com campo próprio e tudo – na Alameda do Lumiar, hoje Alameda das Linhas de Torres, no Sítio das Mouras.

Olhem só o artigo 1º. dos primeiros Estatutos do Sporting Club de Portugal: «Sporting Club de Portugal é o título d’uma associação composta d’individuos d’ambos os sexos de boa sociedade e conducta irreprehensivel».

Aliás, os novos sócios eram aceites ou recusados sob o secular sistema das pedras brancas e pretas depositadas num saco pelos sócios mais antigos. Com algumas exceções: havia nomes inaceitáveis, mesmo que conseguissem recolher a totalidade das pedras brancas – indivíduos cuja conduta não era irrepreensível.

O símbolo do clube foi José de Alvalade buscá-lo ao brasão de família de seu primo, D. Fernando de Castelo Branco, Conde de Pombeiro: um leão rompante em campo azul. Trocou-se o azul pelo verde, como símbolo de esperança. 
«O leão rompante assinala a perenidade da força sportinguista que alcançou o clube a um lugar proeminente no desporto português», escreveria Eduardo Azevedo, historiador do Sporting. Um leão ainda branco, na altura. Que deixava de peito a arfar de orgulho Mário Pistachini, que viria a ser presidente do clube: «O leão branco, nobre e puro, em campo verde, vibrante de força, de coragem e de justiça, habita na alma de todos os sportinguistas».

Que ninguém ignore a História, mas foi preciso esquecê-la. Ninguém range os dentes de nariz empinado, ninguém faz estalar músculos e tendões com o dedo mindinho esticado segurando uma chávena de chá. Por isso, também com alguma surpresa, demos com um Sporting popular, entregue a todas as classes que o formam sem os insuportáveis tiques de uma antiga opulência entretanto perdida. Também foi preciso saber ir á procura do povo onde o povo está; foi preciso ser da rua e não dos gabinetes; foi preciso ser malandro onde antigamente campeava a empáfia.

Um campeão de todos

Nelson Rodrigues podia ter escrito: «Vivo ou morto, qualquer português foi do Sporting por um dia». É bem possível que o meu dia tenha sido na terça-feira, dia 11 de  Maio, tempo das rosas. Não só o meu, estou certo. Lá está, encontrem o lugar onde mora a consciência… 

«Tirem-me daqui a metafísica!», gritaria o Álvaro de Campos. Fados canalhas; homens bêbados; montras de leitarias; lençóis dependurados nas janelas.

O rio ao fundo.

«Macio Tejo, ancestral e mudo».

Lisboa na noite chuvosa e triste.

O grito preso na garganta. Mas apenas por mais um pouco…

O transístor pousado sobre o balcão de mármore da taberna: 

«GOOOOLOOOOOOOOO!»

O grito fugindo ao longo das ruelas estreitas. Um grito que ecoou em mais grito e ainda em mais gritos até que as gargantas enrouqueçam de vez.

Um golo bastou. O Sporting deixou para trás a tristeza, o leão sorriu nos braços do Marquês.

Um céu carregado de estrelas por entre pingos de chuva.

Um golo, um golo apenas desencadeou a festa.

Há alguém que abraça outro alguém mesmo no meio do coração. Marinheiros embriagados tombam no Cais do Sodré.

Garrafas de cerveja voam com destino aos polícias de fardas escuras. Onde está Lisboa agora, no meio de tanto verde? 

Gente perde-se por entre outra gente. Há, como sempre, bestas de 46 patas que provocam arruaças. Está-lhes no sangue podre, infetado pelas drogas e pelo álcool. 

Onde foi parar a pandemia? Quem contamina quem?

Só se for de alegria.

«Eterna verdade, vazia e perfeita».

Lisboa revisitada. E Tejo e tudo.

Fiquem por aí. Divirtam-se. Ninguém será capaz de sujar o vosso entusiasmo. Ninguém terá coragem de vos recusar a justiça da conquista.

Por mim, já chega – está na hora. Vou dormir. Fecho a luz. Tranquilo e com a sensação de que tudo está, afinal, no seu lugar.