Fahrenheit 451: Queimem certos jornais

por João Cerqueira Escritor Centro de Vigilância Democrática. Lisboa. 10.00H. – Chefe, más notícias. A jornalista rebelde voltou a fazer uma reportagem nociva para o governo. Depois do favorecimento de amigos, desvio de fundos e insinuações de trafulhices, agora veio com a exploração dos emigrantes… – Esta gente não aprende? Ela não viu o que…

por João Cerqueira
Escritor

Centro de Vigilância Democrática. Lisboa. 10.00H.

– Chefe, más notícias. A jornalista rebelde voltou a fazer uma reportagem nociva para o governo. Depois do favorecimento de amigos, desvio de fundos e insinuações de trafulhices, agora veio com a exploração dos emigrantes…

– Esta gente não aprende? Ela não viu o que aconteceu à outra que estava sempre a malhar no antigo querido líder?

– Passamos então à fase seguinte?

– Sim. Já lançamos as milícias nas redes sociais para a insultar, difamar e vasculhar o seu passado e, mesmo assim, não  resultou. O diabo da mulher é rija. Temos de falar directamente com o patrão dela e explicar-lhe que haverá problemas se ele não a calar.

– Refere-se a cortes nos apoios ao jornal e supressão da publicidade?

– Sim, para começar. E, afinal, quantos jornais estão do nosso lado?

– Todos, menos três. Infelizmente, há jornalistas mal formados que não respeitam a democracia. Ainda não os podemos fechar, pois não?

– Ainda não, mas estamos a tratar do assunto. Quando tivermos a maioria absoluta será mais fácil fechar jornais.

– Olhe, mas também há jornalistas fiéis que não só nos elogiam como ainda atacam a oposição. Dá gosto lê-los e vê-los falar na televisão.

– Adoro esses cãezinhos. E como vão as coisas nas faculdades?

– Ah, aí está tudo controlado, sobretudo nas áreas humanísticas. Os alunos estão a ser devidamente doutrinados para serem cidadãos responsáveis. Os currículos foram organizados para eles pensarem e  votarem como deve ser. E como já incluímos a nossa doutrina na escola primária, de pequenino é que se torce o pepino, nas próximas gerações não haverá desvios da ortodoxia.

–  Muito bem, é uma visão comovente de um futuro radiante. Passemos aos humoristas, dão problemas?

– Nenhuns. Também estão com a Situação. Só gozam com governantes de outros países, ou com a  nossa oposição. Nem lhes passa pela cabeça fazer piadas com o governo.

– Que engraçado. E a gente da cultura?

– Oh, esses estão sempre do nosso lado. São todos bons rapazes, e raparigas. Quando os jornalistas se excedem, até redigem petições contra a liberdade de expressão. Eles sabem como se deve educar o povo. Bom, às vezes  também escrevem uns manifestos a exigir dinheiro, mas depois calam-se para não perder de vez os apoios. São cultos, não é verdade?

– E como estão aqueles problemas com as causas fracturantes?

– Isso não é connosco. O departamento do Pensamento Higiénico é com os nossos aliados. Eles criaram o Índex das Ideias Proibidas e já acenderam as fogueiras.

– Quais deles?

– Os moderninhos, os outros são um bocado reaccionários nestas coisas. Até fazem uma careta de nojo quando ouvem falar destes temas.

– Mas os moderninhos ainda serão mesmo nossos aliados?

– São. Como sabe, adoram farsas e teatro.

– Óptimo. Realmente, eles têm um arsenal de adjectivos cáusticos para cada desvio da norma. Criaram um clima de intimidação tão eficaz que já são poucos os que se atrevem a dizer em público algo contrário à doutrina. Há medo e isso é tão bom. Enfim, são uma polícia do pensamento à moda antiga com farda moderna.

Foi uma boa piada, não foi?

– Chefe, os tempos não estão para graças. O nosso modelo de democracia está sob a ameaça de forças que a querem destruir. Os subversivos querem fazer-nos regredir ao tempo em que cada um era livre de dizer o que pensava, em que se podia criticar tudo e todos sem receio, em que se passavam imagens na televisão sem vistoria prévia. Enfim, a esse período de anarquia e bandalheira que eles chamam liberdade de expressão.

– Sim, nesses tempos tivemos imensos problemas com o jornalismo livre e a justiça independente.

–  Enfrentamos lobos com pele de cordeiro. Como eles se dizem democratas e defensores dos direitos humanos, muita gente acredita e não percebe que, na verdade, são fanáticos apostados na destruição dos nossos valores.

– É por isso que a nossa missão exige uma vigilância constante. Ainda não podemos fechar os jornais dos nossos inimigos, mas podemos calar os jornalistas mais atrevidos e reeducar os cidadãos que não acreditam na nossa verdade. Tudo dentro da lei, claro. E temo-nos saído bem, não temos?

 – Temos, chefe. Não verdade, não nos devemos preocupar. A sociedade está controlada e higienizada. A nossa doutrina é uma religião e os heréticos são queimados. Só uma catástrofe poderá tirar-nos do poder nos próximos tempos.