O adepto errante

Já torci por clubes que se odeiam. Acontece que, acima dos clubes, ergueu-se a estima por homens valorosos nos quais poucos acreditavam.

Fiz-me adepto do Clube de Futebol ‘Os Belenenses’ num dia em que passava diante do local onde iria nascer o Estádio do Restelo. Na altura, eu era uma criança. Ali existia uma pedreira – a Pedreira de Alcolena, que durante séculos forneceu blocos de calcário para a cidade de Lisboa, incluindo o vizinho Mosteiro dos Jerónimos – e estavam precisamente a abrir a cratera para a implantação do estádio. 

Eu passava por lá todos os dias a caminho da escola. De vez em quando, um homem com bandeiras vermelhas nas mãos saltava para o meio da rua, mandava parar o trânsito de carros e peões, depois ouviam-se dois ou três estrondos, voavam pedras pelo ar, esperava-se uns segundos e tudo voltava à normalidade. 
O buraco para o Estádio do Restelo foi aberto assim, a cargas de dinamite. 

Foram estas as circunstâncias em que decidi ser adepto do Belenenses. É certo que a minha família tinha ligações ao clube. O meu avô Virgílio Paula, pai da minha mãe, que era médico, foi um dos fundadores do CFB, com Cândido de Oliveira e outros. Em jovem jogara futebol no Benfica, chegou a alinhar na equipa principal, e depois veio para Belém com um grupo de amigos benfiquistas fundar ‘Os Belenenses’.

Mas praticamente não conheci esse meu avô, que morreu muito novo, pelo que não me influenciou.

Continuo hoje a ser do Belenenses, embora já não seja sócio. Pertenci ao Conselho Consultivo e ainda sou pequeno acionista da SAD. Além disso, ao contrário de outros belenenses, que tinham (ou têm) um segundo clube, eu nunca tive. Sempre fui apenas do Belenenses. 

Deu-se, entretanto, um fenómeno raro. Um dos últimos treinadores a fazerem um grande trabalho no Belenenses foi Jorge Jesus. Tive pena de ele ter saído – e a partir daí passei a acompanhar a sua carreira. Esteve em Braga com êxito e foi parar ao Benfica. Aí, o caso fiou mais fino. Poucos benfiquistas achavam que teria unhas para reerguer uma equipa que estava de rastos. Aos meus amigos, eu dizia: «Vão ver que o Jesus vai fazer um grande trabalho». Mas não era fácil acreditar. 

Por tudo isso, desejei que tivesse sucesso. E naturalmente, sem deixar de ser do Belenenses, dei por mim a puxar pelo Benfica. 

Sabemos o que aconteceu a seguir: o milagre deu-se, o Benfica foi campeão logo nesse ano – e nos anos seguintes, embora com alguns percalços, roubaria ao FC Porto a hegemonia do futebol português, invertendo uma tendência de muitos anos. 

Depois foi a atribulada saída para o Sporting e a polémica que gerou. Pareceu-me lamentável o comportamento do Benfica nesse processo e fiquei naturalmente ao lado de Jesus. 

E assim dei por mim a puxar pelo Sporting. Sofri com a perda do campeonato em 2016, falhado por uma unha negra. 
Até que veio o triste episódio Bruno de Carvalho. Após quatro anos de um trabalho positivo, o homem como que enlouqueceu – protagonizando episódios inacreditáveis e nunca vistos. Nunca se assistira a nada assim nem parecido: o presidente de um clube em guerra com os jogadores e o treinador. E como não podia deixar de ser, tudo terminou em violência, com a invasão de Alcochete. 

Jorge Jesus entretanto voou para o Brasil, com passagem pela Arábia Saudita, e ali mostrou toda a sua capacidade para dar a volta a casos perdidos: com o Flamengo, que não era campeão do Brasil há dez anos, não só ganhou o Brasileirão como venceu a Taça Libertadores, correspondente a toda a América do Sul. 

Atingiu o cume. Foi condecorado pelo Presidente da República e para muitos tornou-se o melhor treinador português.
Até que…Chamado por Luís Filipe Vieira, que enfrentava umas eleições difíceis, rasgou o contrato com o Flamengo, fez as malas e meteu-se no avião com o presidente do Benfica de regresso à Luz. 

Achei um erro. Primeiro, os contratos são para cumprir; depois, os regressos raramente dão bom resultado. E Jesus e Vieira já tinham idade para o saber. 

Enquanto isto, o Sporting contratara um jovem treinador que… tinha passado pelo Belenenses como jogador. E que, não sendo um superdotado, era um futebolista correto e inteligente, qualidades que lhe valeram a transferência para o Benfica. Chamei-lhe um dia «Rubi Amorim». 

Perante este cenário, não é difícil perceber que continuei a torcer pelo Sporting. E tive este ano a satisfação de, contra todas as expectativas, o ver campeão nacional.

E aqui têm a história rara de um ‘adepto errante’. Que já torceu por clubes que se odeiam. Acontece que, a partir de certa altura, acima dos clubes ergueu-se a estima por homens valorosos cujo sucesso desejei (ou desejo) e nos quais poucos acreditavam. E que têm como traço comum terem passado pelo… Belenenses.