Travar a fundo, antes que seja tarde

Ou seja, sorrateiramente e assim como quem não quer a coisa, enquanto se discutia o fim do estado de emergência e o desconfinamento, vá de aprovar uma lei que, sob louvável designação, recupera o que de pior tinha o Estado Novo: a censura.

A velocidade a que as coisas se sucedem nos tempos modernos faz com que quase tudo se torne tão relativo que nada, mas mesmo nada é verdadeiramente importante para que possa importar mais do que meia dúzia de dias – e meia dúzia de dias já é demasiado. Ainda que não raro mas sem que percebamos porquê há coisas que perduram muito mais apesar da pouca ou nenhuma importância que têm – ou melhor, talvez por isso mesmo.

 A voracidade destes modernos tempos faz com que, no meio de tanta coisa de somenos importância, passe despercebido – ou quase, quando não propositadamente relegado para secundaríssimo plano – o que é essencial. E quando baixamos a guarda…

A Assembleia da República aprovou em abril e o Presidente Marcelo promulgou a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital – para que conste: Lei 27/2021, de 17 de maio, resultante da fusão dos projetos lei do PS e do PAN, que mereceu os votos favoráveis dos partidos proponentes, do PSD, do BE, do CDS e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues e a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal. Ou seja, dos 230 deputados, nem um votou contra.

A nova lei é assim apresentada no site da Direção-Geral da Educação (para nos ensinar a todos): «No documento que prevê os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço, são enunciados vários direitos como o direito: ‘ao esquecimento’; à proteção contra geolocalização abusiva; ao desenvolvimento de competências digitais ou ainda o direito de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital.

A lei determina que o Estado deve assegurar o cumprimento, em Portugal, do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação para proteger a sociedade contra pessoas que produzam, reproduzam e difundam narrativas desse tipo.

Está previsto que todo o cidadão tem o direito a apresentar queixas à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) em casos de desinformação ».

Ou seja, sorrateiramente e assim como quem não quer a coisa, enquanto se discutia o fim do estado de emergência e o desconfinamento, vá de aprovar uma lei que, sob louvável designação, recupera o que de pior tinha o Estado Novo: a censura.

Basta ler o articulado desta Lei 27 ou Carta dos Direitos Humanos na Era Digital e compará-lo com o famigerado Decreto 22 469, que instituiu a censura prévia, e que foi publicado em simultâneo com a Constituição de 1933.

Uma como outro proclamam a defesa de interesses superiores. Mas não foi sempre em nome de princípios e fins altruístas, coletivos e do bem comum que se cometeram as maiores atrocidades na História da Humanidade?

Dar ao Estado o poder de limitar a liberdade de expressão e de informação é um atentado ao regime democrático.

Inaceitável!

Bem podem argumentar os autores e cúmplices desta aberração que o objetivo fundamental é «proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam e difundam narrativas» de desinformação. Balelas.

As fake news são, de facto, uma realidade (das redes sociais) em que, por vezes, até os mais conceituados órgãos de informação mundial são enredados.

Mas sempre as houve.

Ora, quem melhor deve e pode combater as fake news e a desinformação é o jornalismo e os meios de comunicação social independentes – já que o fact check é função básica dos jornalistas, cuja obrigação é escrever ou publicar apenas os factos verificados e confirmados.

Conceder ao Estado a atribuição de ‘selos de qualidade’ da informação – como esta lei também prevê – ou tais poderes censórios é passar um atestado de menoridade aos jornalistas e aos cidadãos em geral e à sociedade para, mais uma vez, impor o pensamento único e os interesses de quem está no poder e nele se quer conservar.

Não é de estranhar, por isso, que o PS tenha avançado com este projeto em conjunto com o PAN. O que se estranha é que nem um deputado tenha votado contra e que o Presidente Marcelo tenha promulgado esta lei. Tudo com cúmplice ou incompetente silêncio.

A verdade possível, ou material, é sempre relativa. Só os déspotas, tiranos, ditadores e os imbecis se arrogam detentores de toda a verdade. A verdade que convém.

Entrámos há muito em excesso de velocidade. Se não travarmos a fundo, e enquanto é tempo, o estampanço é certo.

P.S. – O jovem António Abreu, que dirige o Notícias Viriato, de Torres Vedras, denunciou desde a primeira hora esta tentativa de institucionalização da nova censura. Simultaneamente, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas tem vindo a negar-lhe a emissão do respetivo título, por considerar que o Notícias Viriato não é um órgão de informação. Não sei a que órgão de informação pertence, por exemplo, Daniel Oliveira, mas a Comissão da Carteira reconhece-o como jornalista, como reconhece muitos outros políticos travestidos de jornalistas. Por que razão não pode mesmo António Abreu ser jornalista?