Estado quer promover “guardiães” da verdade

A lei proposta por PS e PAN, que entra em vigor daqui a dois meses, prevê a criação – apoiada pelo Estado – de entidades que definam a informação online como ‘fidedigna’ ou ‘não fidedigna’.

Estado quer promover “guardiães” da verdade

Aprovada a 8 de abril pela Assembleia da República, sem votos contra e com abstenções do PCP, PEV, Chega e IL, e promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa a 8 de maio, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital foi publicada em Diário da República a 17 de maio e entra em vigor daqui a dois meses. São mais de 20 artigos a definir os direitos dos cidadãos na sua vida ‘online’, onde «o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação», como pode ler-se no diploma. 

Por entre os diferentes temas, o mais polémico prende-se mesmo com a garantia de que o Estado passará a dar proteção contra a desinformação, um dos maiores perigos apontados ao uso da internet e das redes sociais nos últimos anos. Para combater a desinformação, que é definida como «toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora […] que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos», o Estado irá apoiar a «criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública».

Ou seja, de uma forma resumida, o Estado passará a tutelar a criação de uma entidade ligada à comunicação social e, consequentemente, à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), para distribuir ‘selos de qualidade’ e definir a informação publicada na Internet como sendo ‘fidedigna’ ou ‘não fidedigna’.

A medida criou polémica, mas não dentro do hemiciclo, onde PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN e as deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram a favor do projeto-lei, abstendo-se PCP, PEV, Chega e IL, e não votando nenhum partido com assento parlamentar contra a proposta, que algumas vozes críticas comparam ao Decreto-Lei n.º 22469, de 11 de abril de 1933. Promulgado durante os primeiros anos do Estado Novo, este decreto-lei regulamentava a censura prévia às publicações gráficas, com o fim de «impedir a perversão da opinião pública e […] defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum».

PCP abstém-se, com muitas dúvidas
Sobre os critérios que levaram os diferentes partidos a votar a favor, ou a abster-se no debate sobre este documento, as opiniões divergem e os representantes políticos alegam diferentes razões. 

Ao Nascer do SOL, o deputado António Filipe fez questão de reiterar que o PCP se tinha abstido, e não votado a favor do projeto-lei, não revelando, no entanto, o porquê de o partido não ter votado contra. Por detrás desta tomada de posição, garante o deputado comunista, esteve a discordância «da adoção por Portugal de um ‘Plano Europeu de Ação contra a Desinformação’ que introduz um controlo público europeu sobre o que se considera desinformação, tornando a narrativa das instituições europeias como critério da verdade». Assim, os comunistas, apesar de não terem votado contra, deixaram claras as razões que evitaram o voto a favor, demarcando-se também «do apoio estatal à criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social, por entender que não cabe ao Estado promover esse tipo de apoios».

Quando questionado sobre a razão pela qual o PCP decidiu abster-se e não votar contra, apesar das discordâncias enumeradas, António Filipe respondeu que as «questões relativas à interpretação da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital ou sobre as razões que a motivam devem ser colocadas a quem a aprovou».

PAN aposta em pluralidade e transparência
Inês Sousa Real, deputada do PAN, partido que esteve envolvido na redação do projeto de lei em conjunto com o PS, acredita que sobre a mesa não se coloca a hipótese de que esta lei venha a ser usada com o critério de censura e que, caso tal aconteça, a entidade em questão estará a incorrer numa ilegalidade. Baseando-se fortemente no Plano Europeu de Luta contra a Desinformação, a deputada do PAN garante que partirão daí os critérios para a entrega dos ditos ‘selos de qualidade’ que, recorda, é uma atividade não obrigatória, mas sim uma «possibilidade para incentivar práticas melhores e mais responsáveis», conforme revela ao Nascer do SOL.

Inês Sousa Real vinca que o projeto de lei não pretende ser uma ferramenta de censura, sendo que «a aplicação prática desta lei não se pode traduzir em práticas de censura, algo reforçado pelo próprio artigo 4.º», acrescentando ainda que «na versão proposta pelo PAN havia uma maior garantia de proteção contra interpretações abusivas da Lei».

Aliás, o artigo 4.º será mesmo a salvaguarda de «que nenhum dos mecanismos previstos na lei pode ser usado para práticas de censura», defende a deputada, garantindo ainda que, no caso de as instituições responsáveis pela verificação da veracidade dos conteúdos não se regerem «conforme aos objetivos fixados na carta e nas recomendações da União Europeia», estarão a incorrer numa ilegalidade.

«O objetivo não é censurar, mas proteger os cidadãos quanto a um fenómeno que, conforme vimos em casos recentes, pode pôr em risco o pluralismo e a democracia», conclui a deputada.

Cristina Rodrigues quer critérios bem definidos
Também do lado dos apoiantes está, entre outros, Cristina Rodrigues, deputada não inscrita que deixou o PAN em junho de 2020 e que também votou a favor desta Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. A deputada começa por explicar ao Nascer do SOL que votou a favor porque a lei «foca pontos muito importantes e que podem contribuir para uma sociedade mais igualitária», dando ênfase aos artigos da Carta que salvaguardam os vários direitos dos cidadãos na sua experiência online.

Sobre o artigo 6.º, que refere a dita criação dos ‘selos de qualidade’, no entanto, a deputada mostra-se com um pé dentro e um pé fora. Cristina Rodrigues começa por admitir que «a lei carece, de facto, da explicitação dos critérios» que estarão por trás da definição do que é ‘fidedigno’ ou não. Ainda assim, defende que «podem ser supridos através de regulamentação específica».

Sobre os ‘selos de qualidade’ e a passagem da informação pelas entidades que decidirão ou não classificar a informação como ‘fidedigna’, Cristina Rodrigues desvaloriza, defendendo não entender que «a ‘opinião’ destas entidades seja final, da mesma forma que outros selos que já existem não são condição para um serviço ou produto existir». «Somente identificam um serviço ou bem cuja proveniência, conteúdo ou outro, foi de alguma certificado, o que transmite uma certa confiança», acrescenta.

O voto a favor é reiterado pela deputada, que não vê o artigo 6.º como criador de ‘filtros’, nem de limitações à liberdade de partilha de qualquer publicação. Nesta explicação, Cristina Rodrigues aponta o dedo às fake news que circulam nas redes sociais, onde, acusa, «tem havido um abuso da liberdade de expressão», devendo ter «especial atenção quando esta é usada para incentivar ao ódio contra grupos em particular, o que como sabemos pode ter consequências muito graves».

Questionada sobre se a entrega destes ‘selos de qualidade’ por uma determinada instituição não correrá o risco de limitar a liberdade de expressão dos cidadãos, Cristina Rodrigues não hesita em separar os dois conceitos. «Parece-me que essa entidade verificará factos e não opiniões», começa por explicar, não afastando o reconhecimento dos «desafios associados a esta verificação», para o que se torna «importante, de facto, assegurar critérios claros e transparentes para que todos percebam uma determinada qualificação por parte de um conteúdo ou entidade».

Para concluir, a deputada, que se mostra convicta das qualidades da proposta, não deixa de fora algumas ‘pontas soltas’, referindo não saber «se será a melhor opção» entregar o poder de decidir o que é ‘fidedigno’ e o que não é a uma única instituição.  Ainda assim, «há bondade na proposta e é importante verificar que tipo de trabalho será desenvolvido», defende a deputada, que sugere ainda um estilo de ‘avaliação contínua’ para perceber os efeitos desta proposta de lei, ao «fazer-se uma avaliação do desempenho e, finalmente, aferir da utilidade ou não da existência destas entidades».

PS, PSD, CDS, Chega, IL e Joacine Katar Moreira não responderam até à hora de fecho desta edição.

O PR limitou-se a comunicar no site da Presidência que promulgou a lei, sem tecer qualquer comentário.