A carta dos generais

As chefias militares têm-se confrontado com políticos sem rasgo para a função. Não admira, por isso, que se sintam  desconfortáveis…

As chefias militares andam zangadas. E a ‘reforma Cravinho’, aprovada no Parlamento pelo bloco central PS-PSD, acolitado pelo CDS, em nada contribuiu para esbater o mal-estar nos quartéis. 

À primeira vista, pode parecer uma ‘guerra de capoeira’ por causa de competências centralizadas no topo da hierarquia, reforçando o poder do CEMGFA, em prejuízo da autoridade tradicional das chefias dos Ramos. Mas adivinham-se outras razões para a crispação, que subjazem à carta assinada por 28 oficiais generais, com Ramalho Eanes à cabeça. 
A instituição militar tem compreensíveis razões de queixa, se olharmos aos cortes orçamentais que já vêm de longe, e que se traduzem, na prática, em escassez ou obsolescência do material, e degradação das instalações, como se viu em Tancos, facilitando um assalto rocambolesco. Dificuldades ainda, de recrutamento e operacionalização do pessoal, com redução continuada de efetivos. 

Um oficial general entrevistado na RTP, a propósito da reforma, quando questionado sobre as origens do descontentamento, foi perentório ao admitir que não se tratava, simplesmente, de uma ‘birra’ corporativa, mas de uma dúvida mais vasta: afinal, que Forças Armadas quer o país? Ou qual é a política de Defesa que o país deseja seguir? 
Perante tais questões, será forçoso reconhecer que as respostas não estão ‘à mão de semear’, até porque qualquer reestruturação militar – ou das forças de segurança – exige, primeiro, um amplo debate que não existiu.

É o caso, também, da Justiça, outro pilar da democracia, cujo pacto ficou a marinar até o presidente do Supremo concluir, em março de 2019, que «apesar das esperanças do Presidente da República, o pacto para a Justiça terá abortado». 
Fosse ou não por isso, o certo é que Marcelo Rebelo de Sousa, dois anos volvidos, compareceu na reabertura das instalações remodeladas do Supremo, e, ao contrário do que lhe é costume, meteu o discurso no bolso e deixou António Joaquim Piçarra, em vésperas de jubilação, a falar sozinho.

Não é preciso usar lupa para encontrar vários pontos de contacto entre as queixas recorrentes dos operadores judiciais e as das chefias das Forças Armadas. Se há tribunais a cair de velhos, o mesmo se dirá de não poucos quartéis. E se a Justiça invoca a falta de condições para ser bem aplicada, a tropa também alega – e comprova-o – que lhe faltam os meios. Em qualquer dos ramos, seja a Marinha, a Força Aérea ou o Exército, a operacionalidade tem vindo a diminuir, legitimando quem se interroga sobre o perfil das Forças Armadas e a natureza das missões a desempenhar. 
Com a ‘manta curta’ e ministros impreparados na Defesa para lidar com militares, a situação só poderia deteriorar-se e transbordar para o espaço publico.

Desde o infeliz ministro Azeredo Lopes, que se deixou enredar em Tancos num novelo complexo, até Gomes Cravinho, um diplomata que ‘escorregou’ na caricata diretiva sobre «a utilização de linguagem não discriminatória» – que mandou suspender à pressa quando se apercebeu das reações –, as chefias militares têm-se confrontado com políticos sem rasgo para a função. Não admira, por isso, que se sintam desconfortáveis.

Reside, aliás, na linguagem do atual ministro a primeira estranheza dos subscritores da carta, acusando-o de estar a «atingir proporções inusitadas», através de «avisos intempestivos e ameaças veladas, veiculadas publicamente».
Em quase meio século pós 25 de Abril não há memória de uma posição coletiva tão vigorosa, contando ainda com a mais-valia da adesão de Ramalho Eanes, um histórico. 

Mas não só. A carta contou, também, com o apoio de outro ex-Presidente e primeiro ministro. Cavaco Silva não foi de rodeios e advertiu o PSD de que seria chocante vincular-se a «um erro grave» que é «a reforma que o ministro da Defesa Nacional pretende agora levar a cabo». De pouco adiantou a veemência de Cavaco ou o facto de dois ex-presidentes, um deles oficial general, convergirem na análise crítica ao documento. 

O PSD e o CDS ‘aninharam-se’ no regaço do PS e o projeto passou no Parlamento, votado na generalidade. Quando chegar a Belém – com alguns retoques ‘cosméticos’ na especialidade –, veremos se Marcelo promulgará «um equívoco a tempo de ser corrigido», como lhe chamou Cavaco. 

Já em França os militares manifestam-se perplexos com a «frouxidão» do Presidente Macron, perante o desafio do «islamismo e das hordas das periferias», que está a inquietar as populações e a alimentar extremismos. Sem invocarem, por enquanto, os mesmos problemas, os autores da ‘carta dos 28’ classificam a ação do ministro como “apressada» e como um «exercício político degradado». E nesta matéria, como noutras, desde a Justiça às Forças Armadas, o PSD vai a reboque do PS e o CDS imita-o. A governamentalização não os incomoda.