A linha vermelha de Putin

A questão ucraniana é para a Rússia um assunto de segurança vital que pode estar a poucos passos de se tornar num casus belli. Uma possível intervenção militar no território vizinho foi evocada sem muitos rodeios pelo Kremlin.

No dia 21 de abril último Vladimir Putin dirigiu perante as duas câmaras do Parlamento a sua alocução anual sobre o estado da Federação Russa. Na parte final do seu discurso Putin dedicou cerca de dez minutos à situação internacional e à segurança da Rússia. Estes minutos foram, certamente, seguidos com especial atenção pelos governos ocidentais. Tanto mais que se desenvolviam então, desde o mês de março, grandes movimentações militares em zonas da Rússia próximas da fronteira ucraniana. Só no dia imediato ao discurso se saberia que a acumulação naquelas regiões de mais de uma centena de milhar de militares, muitos deles tropa de elite vinda de locais afastados, iria ser revertida, retornando muitos militares às suas bases originais. Aparentemente, muito material militar pesado permanecerá perto da fronteira, disponível no futuro para uma eventual missão militar de envergadura em território ucraniano. 

Voltemos às palavras de Putin. Por entre a convencional expressão do desejo de a Rússia estabelecer relações internacionais harmoniosas na base do respeito mútuo entre Estados soberanos, surgiu a ameaça: «Nós não desejamos verdadeiramente queimar pontes. Mas se alguém confundir as nossas boas intenções com indiferença ou fraqueza e pretender queimar aquelas pontes, deverá saber que a resposta da Rússia será assimétrica, rápida e dura. Aqueles que estão por detrás das provocações que ameaçam os interesses fundamentais da nossa segurança lamentarão o que tiverem feito de uma maneira como o não fizeram desde há muito». Palavras duras que sugerem mais o campo de atuação de Serguei Shoigu, ministro da Defesa, do que o de Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros. 

Após garantir que nenhuma ação será tomada de forma irrefletida, Putin insistiu: «Mas eu espero que ninguém pensará atravessar a ‘linha vermelha’ com a Rússia. Nós próprios determinaremos em cada caso específico onde essa linha será traçada». Logo de imediato, como que para garantir a qualidade do aço na ponta da lança com que riscava o solo, Putin retomou um tema recorrente nas comunicações homólogas dos últimos anos: a modernização do material bélico russo, que terá ultrapassado os três quartos no global e os 88% no caso fulcral das armas nucleares estratégicas. Na mesma senda, explicitou seguidamente os vários sistemas bélicos de ponta, uns já operacionais, outros em fase de instalação. 

Como interpretar tais afirmações? Tudo leva crer que serão para tomar a sério. Com efeito, uma conjugação de factos no primeiro trimestre de 2021 pode ter decidido a direção político-militar russa a eriçar a sua atitude e a traçar linhas vermelhas, umas mais nítidas do que outras – o que se perde em clareza ganha-se em flexibilidade. No entanto, uma delas tinha vindo a ser diligentemente esboçada desde havia poucas semanas, através das manobras militares acima já referidas. Com efeito, a questão ucraniana é um assunto da maior importância para a Rússia, um assunto de segurança vital que pode estar a poucos passos de se tornar num casus belli. Uma possível intervenção militar no território vizinho foi evocada sem muitos rodeios pelas autoridades russas, por meio de ameaças mais ou menos veladas à própria continuidade do Estado ucraniano. Pôs-se então a questão, questão que no imediato parece ter merecido uma resposta negativa por parte das potências ocidentais: é a salvaguarda da integridade territorial da Ucrânia um casus fœderis para estas últimas potências?

No entanto, as respostas são provisórias, mutáveis e dinamicamente sujeitas a atos mais ou menos refletidos. Muito pode passar-se no espaço de um mês, tal como julho de 1914 tragicamente demonstrou há pouco mais de um século. Não se pensa necessariamente num dos próximos meses, como é óbvio. Mas, num futuro não necessariamente longínquo, uma conjugação desfavorável poderá precipitar os acontecimentos. 

E a dinâmica regional é tudo menos estável. A Ucrânia, o país mais extenso da Europa a seguir à própria Rússia, é o palco central. Cerca de mil quilómetros separam Lviv, capital da Galícia, região a oeste, definitivamente irrecuperável para a órbita russa, de Donetsk, no Donbass, a pouca distância da fronteira russa e atualmente sob o controlo de forças rebeldes. A norte, a Bielorrússia mantém-se num limbo que dificilmente se prolongará. Foi atravessando este território, talando Minsk na direção de Smolensk, que as forças de Napoleão (em 1812), de Guilherme II (1918), de Piłsudski (1919-1920) e de Hitler (1941) tomaram o caminho de Moscovo. Como poderia assim a Rússia alhear-se do porvir deste país eslavo? Não longe da Roménia, a Transdnístria é uma verdadeira praça-forte russa incrustada numa Moldávia que se mostra indecisa entre o apelo do Ocidente e o do mundo eslavo. A sul, no Mar Negro, a Convenção de Montreux (1936) condiciona as movimentações e o calado das frotas de guerra dos países não ribeirinhos. Mas, eis que um novo canal a abrir junto ao Bósforo pode vir a tornar aquela convenção obsoleta, com as evidentes implicações geoestratégicas. Recorde-se que o detentor das chaves de acesso a este mar enclausurado é ninguém outro que Recep Erdogan, para quem disfarçar os crescentes desígnios neo-otomanos já não muito preocupa. Nas margens orientais deste mar ergue-se a cadeia do Cáucaso, em cujas entranhas fervilham ódios antigos e insanáveis e dos quais a Rússia não se pode alhear. Mais a sul, na martirizada Síria, um rastilho meio aceso separa em alguns quilómetros tropas russas de tropas norte-americanas. A oriente, o não muito distante Irão encontra-se sob a mira constante de Israel e uma eventual mudança de regime nele favorável ao Ocidente traria consequências difíceis de calcular, mas seguramente inquietantes, para a Rússia, ao permitir «destrancar» o acesso pelo Sul ao Mar Cáspio e à Ásia Central. O perigo do desencadeamento de um megassismo nesta extensa zona não pode ser excluído, face a tantas placas tectónicas geoestratégicas em movimento e que têm vindo a gerar tensões crescentes. 

Mas, também em terras mais boreais a Rússia não está poupada à inquietação: das torres de S. Petersburgo adivinha-se, a centena e meia de quilómetros, o rio Narva. Na margem ocidental desse rio encontra-se a cidade do mesmo nome, a terceira em importância na Estónia – território da Nato, portanto – e onde habita uma população quase integralmente de etnia e língua russas. 

Mas, sob o pano de fundo inquietante para a Rússia que acima se evocou, o que aconteceu nos primeiros meses de 2021 que possa ter forçado a mão ao Kremlin? A Administração Biden entrou em funções com a promessa de um endurecimento da posição norte-americana face à Rússia. Seguiu-se o insulto, a todos os títulos gratuito, de Joe Biden ao Presidente da Federação Russa. Em resposta à seguinte pergunta do entrevistador «Do you think Putin is a killer?», Biden responde: «Mm-hmm, I do». Ao ter declarado, pouco antes na mesma entrevista, que não vislumbrara qualquer alma no olhar de Putin, Biden reduzia o Presidente russo a um «soulless killer». A reverberação que este insulto pode ter tido na mente de Putin é insondável, mas, provavelmente pressentiu que quem o assim classificava não desdenharia de ver o seu rosto sobre fundo branco e riscado com dois traços negros ou semi-obliterado na capa da Time, continuando assim uma tradição longa de décadas naquela revista, que começou com o rosto de Hitler, em 1945, e se prolongou neste século com os de Saddam e de Khadafi. A tentativa insistente da imprensa ocidental em alcandorar Alexei Navalny a challenger de Putin, quando Navalny, apesar da grande notoriedade na blogosfera russa, não ultrapassa os poucos por cento como escolha do eleitorado para a chefia do Estado, pressupõe o desejo impaciente do Ocidente em promover uma substituição política no Kremlin. Talvez mais determinante ainda, as recentes ações do Presidente ucraniano Zelenskii que pretendem cortar as amarras com o mundo russo. Refira-se a cessação da transmissão de canais russófonos controlados por Viktor Medvedchuk, o compadre de Putin e que é um influente oligarca e figura de proa do partido pró-russo. Já no corrente mês de maio, Medvedchuck foi acusado de alta traição e encontra-se atualmente sob prisão domiciliária, no que só pode ser considerado como uma afronta pessoal a Putin: é quase certo que esta recente iniciativa de Kiev acelerará a degradação nas relações com o Kremlin. Além disso, o crescente condicionamento do uso da língua russa no espaço público não pode ter agradado à população russófona – mesmo no calor político de 2014, medidas radicais nesse sentido acabaram por ser revertidas pelas autoridades ucranianas. E os retumbantes 73% de votação, obtidos há dois anos por Zelenskii, incluíam precisamente a população russófona do sul e do leste da Ucrânia, agradada com as promessas do candidato em distender as relações com a Rússia. Caso mais grave, talvez, a promoção por Zelenskii de uma plataforma tendente a programar a recuperação da soberania da Crimeia pela Ucrânia. Ora, tal desígnio só será possível por cima do cadáver político ou físico de Putin e ter-lhe-ia associada, verosimilmente, uma Guerra Mundial. Por fim, os «nervos de aço» dos siloviki que rodeiam Putin parecem ter sido sobressaltados e pode ter emergido no círculo de poder do Conselho de Segurança da Rússia o consenso de que era hora de traçar linhas vermelhas nas marcas ocidentais do disputado espaço euroasiático. Se assim for, como tudo o indica, as palavras de Putin são para levar a sério. 

Em remate, recue-se até um século e ganhe-se assim alguma perspetiva histórica. Não há dúvida de que a Rússia – a «riddle wrapped in a mystery inside an enigma», na idiossincrática fórmula de Churchill – se tem comprazido em desorientar os analistas: de frustrado «rolo compressor» lançado rumo aos Impérios Alemão e Austro-Húngaro, em 1914-1916, passou a «gigante com pés de barro», em 1917-1918, tendo sido então a Rússia sujeita pelos alemães a uma paz cartaginesa no Tratado de Brest-Litovsk (março de 1918) e à intervenção das potências ocidentais no período imediato e por alguns anos (até 1922). Em 1941, ao iniciar Barbarossa, Hitler alvitrava que um forte pontapé faria desabar a improvisada estrutura soviética, que não seria mais do que um grosseiro cenário de Potemkin. Os melhores analistas anglo-saxónicos concordavam, ao prognosticar poucas semanas de resistência militar soviética, nesse fatídico verão de 1941. Desconcertantemente, enganaram-se e quatro anos mais tarde, com as tropas soviéticas a centenas de metros do seu bunker, Hitler suicidou-se. Estaline ganhou então para a União Soviética um espaço estratégico na Europa Central e Oriental. Por fadiga imperial e por apodrecimento do sistema ideológico e económico, que não pela ação político-militar dos seus adversários, os pés de barro do colosso voltaram a ceder em 1989-1991. 
Contradizendo tudo o que seria expectável, as perdas do Kremlin não se limitaram ao cordão sanitário atrás referido: as linhas divisórias entre as repúblicas soviéticas, traçadas com ligeireza sete décadas antes, sob um fundo de ideologia universalista, deixaram a Rússia remetida para trás de fronteiras tão recuadas como ela não conhecera desde o século XVII. Por tradição histórica, uma amputação de tal dimensão segue-se a uma derrota conclusiva numa guerra quente. Esta amputação, surpreendentemente, seguiu-se a uma «Guerra Fria» que nunca vira a Rússia trocar um tiro com os seus rivais ocidentais. Putin, que metodicamente se propôs reerguer o colosso dos anos caóticos da presidência de Ieltsin sobre bases menos quebradiças, não deixou de reconhecer, para escândalo de muitos, que presenciara na débâcle do seu país «a maior catástrofe geopolítica do século XX». Imponentes edifícios políticos ruíram com fragor no decurso desse século: os Impérios Russo, Alemão, Austro-Húngaro e Otomano, em 1917-1918, a Terceira República Francesa, em 1940, a Alemanha Nazi, cinco anos mais tarde. Ao calar das armas vencidas seguiu-se invariavelmente um armistício e a imposição de condições mais ou menos duras e humilhantes, mais justas nuns casos do que noutros.

Ora, o facto de a Rússia ter permanecido uma superpotência nuclear durante o seu nadir só reforça o inusitado da situação e a perceção de ter então perdido a guerra ideológica e económica, que não a militar, continua a enformar a atitude deste país. Como tal, retomando as palavras de Putin de 21 de abril passado, será prudente tomar consciência da sensível mudança no seu tom. A «riddle wrapped in a mystery inside an enigma» – recorde-se da mitologia grega o destino daqueles que não tinham resposta para o enigma da esfinge.l