Chefe da máfia turca desafia o Governo de Erdogan

Em vídeos vistos por dezenas de milhões, Sedat Peker acusou o ministro do Interior turco de ocultar crimes como violação, homicídio e tráfico de droga, ao mais alto nível. 

A mais fascinante telenovela turca, recheada de intrigas palacianas, punhaladas nas costas, crime entre as mais altas esferas do Estado e vingança, decorre perante os olhos de milhões, nas redes sociais. Com a particularidade de que o narrador, Sedat Peker, um chefe da máfia condenado, durante anos ligado ao partido governante, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (ou AKP), garante que as histórias são reais.

As acusações – que incluem tráfico de droga e corrupção por altos dirigentes, o encobrimento da violação e homicídio de uma jornalista por um deputado, ou a contratação do próprio para atacar uma redação – surgiram em vídeos, que se pensa terem sido publicados no Dubai, e já têm mais de 50 milhões de visualizações, segundo a Reuters. Para pânico do Governo de Recep Tayyip Erdogan, que nega todas as alegações e tem sofrido uma quebra na popularidade. E agora vê mais de metade dos turcos a acreditar nas acusações de Peker, segundo sondagem do Cumhuriyet.

No centro da alegada trama desenrolada por Peker – alvo de um mandato de captura, na quinta-feira, devido aos vídeos – está o todo-poderoso ministro do Interior, Süleyman Soylu, uma espécie de anti-herói da história, que o mafioso diz ter sustentado durante anos e protegido de ameaças de rivais dentro do AKP, a troco de avisos quanto a investigações contra si.

A desavença entre os dois terá começado quando Soylu não conseguiu impedir que a casa de Peker fosse revistada numa investigação a tráfico de droga, quando a sua mulher e filhas estavam lá. Isto enquanto o ministro estaria a fechar os olhos aos alegados esquemas de extorsão do seu filho, Engin Levent Soylu, e a uma rota de cocaína entre a Venezuela – cujo regime tem em Erdogan um dos seus maiores apoiantes – e a Turquia, usando iates de luxo, montada pelo ex-deputado Ekram Yildirim, filho do antigo primeiro-ministro Binali Yildirim, hoje presidente do Parlamento turco. Binali já veio a público explicar que o seu filho só efetuou visitas a Caracas para distribuir ajuda humanitária e testes covid. 

As alegações de Peker, episódio a episódio, vão-se tornando cada vez mais incríveis, e estão prometidos mais cinco episódios. Sentado à secretária – sempre com um livro à frente, como uma biografia de Bob Dylan entitulada Wicked Messenger, ou “mensageiro perverso” – num quarto de hotel nos Emirados Árabes Unidos, de ar bonacheirão e fio de ouro ao peito, a sobressair numa camisa aberta, o mafioso de 49 anos, condenado a 14 anos de prisão em 2007, por liderar uma organização criminosa, traça o retrato de um Estado indistinguível do crime. 

Outro vilão recorrente é o antigo ministro do Interior, Mehmet Agar, que foi condenado a cinco anos de prisão por envolvimento com o crime organizado, em 2011. Durante o seu tempo no posto, nos anos 90, Agar teria montando uma extensa rede de tráfico de droga, usando recursos e agentes do Estado, além de encomendar o assassinato de vários jornalistas, que nunca foram resolvidos. Num desses atentados, contra Kutlu Adali, no Chipre, em 1996, um dos profissionais contratados seria o próprio irmão de Peker, Attila, apesar de ter sido outra equipa a conseguir abater o jornalista a tiro, contou o mafioso.

Este fio da trama estende-se à atualidade. É que Agar e Soylu, ambos oriundos do conservador Partido Democrático, sempre foram próximos. E por isso, acusa Peker, o ministro do Interior teria encoberto o filho de Agar, Tolga, atual deputado do AKP, quando este violou e matou uma jornalista cazaque, Yeldana Kaharman, em 2019, pouco depois de esta o entrevistar. A morte da jovem de 21 anos foi declarada suicídio por afogamento, frisaram as autoridades turcas, em resposta às alegações.

 

Memória Não é a primeira vez que Peker surge na ribalta. Já fora conotado com o escândalo Susurluk, em 1996, quando um acidente de carro resultou na morte de dirigentes da polícia e dos serviços secretos, que seguiam juntos com figuras do crime organizado e de uma organização de extrema-direita, os Lobos Cinzentos. Revelando uma colaboração próxima entre a máfia e o Estado na caça aos guerrilheiros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, com quem a Turquia estava em guerra. O caso resultaria na demissão de Agar do ministério do Interior. 

Agora, os cativantes vídeos de Peker – um meme com o mafioso, sobreposto ao logo do Netflix, popularizou-se entre turcos nas redes sociais – trazem o caso à memória. “Podemos dizer que isto é um segundo Susurluk”, notou Fikri Saglar, antigo dirigente da oposição, citado pela France Press. “Talvez até mais sério do que isso”.

Inicialmente, o caso Peker estava praticamente ausente nos meios de comunicação turcos, mantidos a rédea-curta pelo Governo de Erdogan, enquanto as visualizações dos vídeos cresciam. Aliás, no início desta semana, um jornalista da Anadolu, Musab Turan, foi despedido por questionar um membro do Governo sobre o assunto. "Pedimos aos procuradores que levem a cabo uma investigação para verificar se é membro de um grupo terrorista ou não", lia-se no comunicado da agência noticiosa, que o acusou de propagar "propaganda" e falta de "princípios jornalísticos".

Contudo, agora já até se vêm repórteres a pressionar o ministro do Interior em conferências de imprensa, insistindo em questioná-lo sobre Peker, uma visão rara no país. Um jornalista chegou a brincar que não tinha medo de ser preso depois da conferência, espantou-se o Middle East Eye

O problema de Erdogan – até agora, Peker sempre expressou admiração pelo primeiro-ministro turco, para cujo casamento foi convidado, evitando cuidadosamente implicá-lo – é que não tem por onde fugir. Por um lado, precisa do apoio eleitoral do ministro do Interior, muito apreciado em círculos conservadores, o que torna complicado demiti-lo. Por outro lado, Erdogan depende da coligação com Partido de Ação Nacionalista (MHP) – cujo braço armado são os Lobos Cinzentos acima mencionados – e boa parte dos turcos tem noção que com isso vem maior envolvimento do crime organizado na política.

Na Turquia, os mafiosos saem cada vez mais das sombras. Esta semana, enquanto o escândalo Peker rebentava, o presidente do MHP, Devlet Bahçeli, sentia-se confortavel em tirar uma foto no seu escritório com Alaattin Çakıcı. Este antigo camarada dos Lobos Cinzentos, tornado mafioso, é acusado de 41 homicídios e foi preso por mandar matar a ex-mulher, que acabou abatida à frente dos filhos. Mas recebeu uma amnistia do Governo turco devido à pandemia – uma amnistia que ignorou prisioneiros políticos.