Herculano. Um espólio que se encontra uma vez na vida

Um raro espólio de Alexandre Herculano, que inclui um caderno com um diário da estadia nos Açores durante a Guerra Civil, foi esta semana leiloado. Um perito da leiloeira Renascimento guia-nos pelos meandros deste tesouro de papel.

Escondido pelas frondosas árvores primaveris da Avenida Pedro Álvares Cabral, perto do Largo do Rato, em Lisboa, o antigo Jardim Cinema, obra Art Déco do arquiteto Raul Martins, de 1930, alberga atualmente a leiloeira Renascimento.
Quem passa por aqui pode nem reparar no edifício, parcialmente tapado pelas folhagens, mas uma vez no interior é difícil não nos perdermos nas histórias e nas peças que nos fazem viajar pelos séculos e pelos quatro cantos do mundo. Tiago Silva, perito em avaliações, diz que até ele descobre coisas novas todos os dias. Esta leiloeira, que já foi um cinema, é hoje um «labirinto de arte», diz o perito, que esconde autênticas relíquias.
 
Uma figura que ‘toca todas as teclas’
Subindo as escadas de madeira, que surgem por trás de uma coleção de grandes relógios de pêndulo, numa pequena sala protegida por uma parede de vidro, encontra-se exposto o espólio de Alexandre Herculano. A documentação, agrupada e protegida por micas A4, chama a atenção pela tonalidade do papel pergaminho e pelo desenho minucioso das letras, escritas há mais de dois séculos. «Só soube deste espólio no dia em que cá chegaram os documentos», revela Tiago Silva. «Quando percebi que realmente se tratava das coisas do Herculano fiquei muito entusiasmado, isto são coisas que acontecem uma vez na vida».

A documentação esteve na posse da família até agora e dela fazem parte manuscritos das obras que publicou; os originais das suas cartas a entidades importantes da época; cartas de cariz íntimo e pessoal; diplomas; e, por último, o documento que tem espicaçado mais a curiosidade dos investigadores: o primeiro caderno diário do escritor, onde este narra a viagem marítima para os Açores, no regresso do exílio. «Consegue perceber-se o percurso editorial da sua obra ao longo de mais de 100 anos», explica o perito, enquanto coloca as luvas. «Temos todos os temas de meados do século XIX e desde os anos 30 do Liberalismo», período em que Herculano desempenhou um papel muito importante quer a nível político, quer na produção historiográfica e literária. 

«Alexandre Herculano é uma figura que ‘toca um bocado as teclas todas’ e que está presente em todos esses debates de âmbito nacional. O país estava todo a mudar com o Liberalismo, foi quase um 25 de Abril, que mudou o panorama do país. Nesta altura foi um bocado isso, há uma grande revolução, uma guerra civil [1832-34], um processo muito complicado que durou bastante tempo», enuncia o perito.

Apesar da listagem presente no catálogo do leilão e da divisão da documentação que discrimina os vários núcleos, o espólio será vendido como conjunto. «Para se compreender alguns dos manuscritos será necessário estudar o conjunto e, se os documentos se dispersarem, perde-se essa leitura e, acima de tudo, do ponto de vista histórico, o seu valor», esclarece o perito, acrescentando: «Isto nunca saiu da família, nunca foi estudado a fundo, passou para os seus herdeiros e saltou de geração em geração até hoje. Alguém o vai ter de estudar ao pormenor». 

Os pontos altos do espólio
Num acervo como este não há um único documento que não seja considerado importante para os investigadores. Todos acabam por acrescentar alguma coisa ao estudo da vida do escritor e historiador. Até aqueles que já estão quase ilegíveis, tão frágeis que qualquer movimento brusco pode fazer estragos irreparáveis. Contudo, o perito fez questão de destacar sobretudo: o conjunto de cartas que Herculano enviou para personalidades como Almeida Garrett, Antero de Quental e António José de Ávila, entre outros, recheadas de conteúdos de âmbito político, histórico e da vida pública do autor; as cartas de âmbito pessoal, que são enviadas para amigos e familiares, íntimas, privadas, que naturalmente não estão publicadas e que nos ajudam a perceber, «o homem por detrás da obra e o percurso de vida dele».

E, por fim, o tal caderno «que tem suscitado bastante interesse, sobretudo por parte dos Açores». Tiago Silva explica-nos do que se trata: «Aparentemente haveria uma referência de que ele teria escrito um diário de viagem. Sendo um liberal apoiante de D. Pedro IV, em 1832, ele está exilado do país, precisamente no âmbito das lutas liberais, entre D. Pedro IV e irmão, D. Miguel. Neste ano, [Herculano] vai para os Açores com um contingente de homens que vão organizar a resistência na ilha – e é neste contexto que escreve este caderno já muito rasurado e com uma leitura muito difícil». 

O diário de viagemaos Açores 
«Quasi todas as embarcações tinham velejado por sua derrota demandando os Açores […] Preparativos indispensáveis retiveram», lê Tiago Silva, tentando descodificar o que se encontra escrito neste diário de viagem. «Com um bocadinho de paciência e tendo experiência isto lê-se. É incrível ter este tipo de documentos em mãos», declara. O diário, que está escrito com tinta ferrogálica (a tinta usada na época, que passa para o outro lado e acabará um dia fatalmente por desaparecer), encontra-se dividido em duas partes: uma primeira onde realmente se encontra o diário de viagem, seguido de algumas folhas em branco; e uma segunda parte, onde o autor escreve sobre uma rapariga da aldeia.

«Lá está, será preciso um aprofundamento e bastante tempo, para se conseguir perceber se isto é uma história também da sua estadia nos Açores, ou se é uma coisa à parte que nada tem que ver», sublinha o perito. «Tivemos inclusive uma oferta de alguém que o queria comprar em separado, para oferecer a uma instituição», adianta. O objetivo, porém, era manter este núcleo coeso.

As obras de Alexandre Herculano 
Até que ponto este espólio é excecional? «Naturalmente devem existir vários manuscritos pelos sítios onde ele passou. Alguma dessa documentação está na Biblioteca Nacional e na Biblioteca Pública Municipal do Porto», prossegue Tiago Silva. Segundo o perito, o interesse deste espólio prende-se, sobretudo, com o facto de se tratar de um grande conjunto que vem diretamente da família e, por isso, «acredita-se que é precisamente o que sobreviveu do seu acervo». 

No que toca às obras do historiador, a documentação conta com versões para publicação e versões anteriores, rasuradas. Centenas de folhas manuscritas com rascunhos e anotações de obras concluídas e de projetos que Alexandre Herculano empreendeu ao longo da vida. Neste núcleo, o perito destaca o conjunto de manuscritos com dezenas de ensaios originais que foram depois reunidos nos vários volumes de Opúsculos. 

A correspondência
A correspondência divide-se em dois conjuntos. Oprimeiro é composto por cartas de âmbito profissional, político, histórico que vêm desde o século XIX, ainda em tempo de vida de Herculano, e inclui as que se prolongam até aproximadamente 100 anos depois da sua morte, até ao século XX, graças aos seus herdeiros, que continuaram a corresponder-se com editoras, académicos e investigadores. Muitas delas são inéditas, outras são cópias – na altura existia a profissão de copiador de cartas.

Segundo Tiago Silva, várias outros conjuntos de correspondência podem ser encontrados na Biblioteca Nacional e na Biblioteca Pública Municipal do Porto. «Neste tipo de figuras é muito interessante perceber-se o contraponto destas cartas. Por exemplo, neste caso concreto, As Cartas acerca da Migração já estão publicadas, mas é interessante perceber se aquilo que está publicado coincide com esta versão original, a versão anterior à que foi parar às mãos do editor», clarifica o perito. Outras versões de cartas já bastante rasuradas são especiais precisamente porque nos oferecem «os primeiros impulsos de escrita» do historiador. «Quando ele está a escrever, vai corrigindo, riscando, mudando a sua opinião em relação às coisas, e é um privilégio podermos ter conhecimento disso», conta. Ou seja, proporciona um acesso em primeira mão ao processo criativo.

No segundo núcleo, constituído pelas cartas de cariz pessoal e íntimo, estão incluídas as últimas correspondências da vida de Herculano. «Meu Joaquim, as coisas aqui custam tanto a arranjar […] que a minha economia doméstica ainda não está em ordem […]. Por fim, a Mariana, se conserva em Lisboa, até que eu tenha isto, em estado de ir buscá-la», lê o perito em voz alta. 

Perto da mesa principal encontra-se uma grande caixa, recheada de pergaminhos, também eles pertencentes a Alexandre Herculano: «São documentos ainda soltos que têm de ser estudados a fundo. Tendo dado apenas uma ‘vista’ muito rápida, deu para perceber que se trata de documentos, dos quais fazem parte notas soltas de viagens, temas que ele estava a investigar, rascunhos para cartas ou documentos que ele vai publicar», descreve. 

O tratamento do espólio 
Apesar de a documentação se encontrar, maioritariamente, agrupada por núcleos numerados e separados em micas, o perito esclarece que o tratamento realizado, apenas para perceber «realmente aquilo que tínhamos em mãos», não foi ainda «arquivístico». O responsável por esse primeiro tratamento, que se destinou ao leilão, foi um investigador contratado pelo alfarrabista que colabora com a leiloeira. No que toca aos cuidados a ter no manuseamento (sempre com luvas) destes «delicados» documentos, existem duas regras essenciais: «Consulta-se uma coisa de cada vez, deixando-a sempre na mesma ordem em que estava disposta, de forma a não se perder nada.

E a pessoa que vier visitar este espólio tem de estar sempre acompanhada por um de nós, para evitar que alguém coloque algum dos documentos ao bolso», avança o perito. «Principalmente com documentos como este» – e aponta para a mica preenchida por um conjunto de assinaturas régias e lacres – todo o cuidado é pouco. «Historicamente pode não ter muito interesse, mas que na verdade é curioso, bonito e muito facilmente encaminhado até ao bolso de alguém», explica.

Mas nesta casa há mais para ver além do espólio do historiador oitocentista. Perto de uma das janelas repousa uma fila de livros perfeitamente organizados. Entre eles encontra-se uma raridade: a primeira edição do clássico de Victor Hugo, Les Miserables, publicada em vários volumes em 1862. Tal como os documentos de Herculano, também são peças «mais frágeis, e, por essa razão, também se encontram separados da exposição principal», justifica Tiago Silva. Os possíveis compradores, quer para a documentação, quer para os livros, são um nicho muito específico. «Uma pessoa vem, senta-se, analisa tudo», diz o perito. «Já tivemos pessoas que passaram mais de uma hora, vendo peça a peça, à procura de coisas específicas».

Os leilões em tempos de pandemia 
Ao aproximarmo-nos de uma grande janela, Tiago Silva explica que «todo aquele espaço, onde se encontra a maior parte das peças do leilão, é reajustado para a realização dos leilões». Nesses dias, desmonta-se a exposição e o espaço transforma-se num grande auditório que, antes da pandemia, recebia cerca de 100 a 150 pessoas por sessão.
Dadas as condicionantes trazidas pela covid-19, a leiloeira começou a utilizar uma nova plataforma, onde também estão outras leiloeiras portuguesas, que transporta o mundo dos leilões para o domínio virtual.

Portanto, a pessoa acompanha o leilão a partir de casa e licita também a partir de casa. «Aqui, temos sempre um pregão presencial com o martelo e nós estamos também na sala com os telefones representando as pessoas ou instituições». No caso desta plataforma portuguesa, «está ligada diretamente ao sistema informático e, quando a pessoa licita em casa aparece-nos diretamente a licitação, como se estivesse efetivamente aqui», descreve o perito. Nas outras plataformas independentes, «cada uma tem um computador respetivo, cada um deles com uma pessoa que faz sinal aquando das licitações», acrescenta. 

Contudo, para Tiago Silva, um leilão realizado presencialmente será sempre diferente de um leilão digital: «Presencialmente é sempre muito mais giro, há um ambiente que se cria e que é propício também à própria licitação. A pessoa entusiasma-se e às vezes ‘estica-se’ um bocadinho». Em contrapartida, digitalmente, no seu computador em casa, a pessoa acaba por apenas ver «o valor a subir, não vendo mais nada a acontecer».

Por outro lado, as novas plataformas também têm aspetos positivos: «Trazem outro tipo de clientes, facilitando a compra de peças mais pequenas que não justificam uma deslocação à leiloeira. É como em tudo na vida. Perdem-se umas coisas mas ganham-se outras».

O lustre do Ritz e os últimos momentos de Camões 
Descemos novamente à sala central. A disposição dos objetos em exposição dá-nos a sensação de estarmos numa casa antiga. O brilho das pratas e joias salta à vista. Ao olharmos para cima, somos surpreendidos por dois grandes e luxuosos lustres que, segundo o perito, foram vendidos no último leilão. «Um deles veio do Ritz de Madrid e o outro do antigo Cinema Monumental, no Saldanha. Demoraram uma semana para serem colocados e demorarão o mesmo tempo para serem desmontados», revela Tiago Silva.

Perto do fundo da sala, quase passando despercebido, encontra-se «uma das peças mais especiais que cá temos», faz questão de explicar o perito. «É um esboço do quadro Os últimos momentos de Camões, de Domingos Sequeira». O quadro encontra-se atualmente «em paradeiro desconhecido», o que faz aumentar a importância deste esboço. 

À margem da visita guiada pelas peças expostas, o perito revela-nos algumas curiosidades sobre esta atividade: «Os leilões são mesmo muito especiais, então quando há uma peça que sobe muito de valor…», comenta com um sorriso de quem gosta realmente daquilo que faz. Num leilão presencial, uma peça demora cerca de 30 segundos a ser vendida.

Mas, quando há lotes excepcionais, esse intervalo pode estender-se consideravelmente. «O mais longo a que já assisti demorou seis minutos e qualquer coisa. Seis minutos não é muito tempo, mas para um pregão de 30 segundos, seis minutos é uma eternidade». 

E recorda uma caixa portuguesa «extremamente rara», em forma de paralelepípedo, datada do final do século XVI, início do século XVII, que ao ser aberta se transformava numa caixa de xadrez. «Só se conhecem meia dúzia. Essa caixa em específico veio de um recheio de uma casa». A família que vendeu desconhecia a sua importância e por isso teve uma agradável surpresa com o valor que atingiu. «Veio com uma base de mil euros, em muito mau estado, mas chegou aos 90 mil euros. Quanto mais baixos são os valores, mais eles sobem!», revela o perito. Relativamente às situações de «empate», é o pregoeiro que decide e «não vale a pena perguntar as razões da decisão. Nestas situações, é como antigamente», remata.

Direito de opção
Tiago Silva, que está ligado à parte do património, tem a convicção de que espólios como este de Alexandre Herculano devem ter como destino «uma instituição pública». Por isso foi feita uma aposta forte na divulgação. «Quisemos tentar dar visibilidade não só à existência deste núcleo, mas também de forma a informar as instituições públicas para, no caso de terem realmente interesse, haver tempo de ativar os mecanismos próprios para isso», elucida. 

«Vamos supor que a Torre do Tombo decide que quer comprar… Em vez de licitar em leilão, eles simplesmente estão cá a assistir e quando bate o martelo, dizem que ‘a instituição opta’». Ou seja, a pessoa ou instituição que arrematou o lote pelo valor mais alto perde o direito, «a outra instituição [pública] compra por aquele valor e a peça fica para o Estado, porque entende-se que algo tem importância», explica o perito. 

Os resultados do leilão
O «tão aguardado leilão» realizou-se nos dias 24 e 25 de maio. Além do espólio de Alexandre Herculano, foram ainda leiloadas todo o tipo de peças de arte: desde arte sacra, porcelana, mobiliário, pintura, documentação, joias, pratas, entre muitas outras coisas.

Na primeira sessão do leilão 134, na passada segunda-feira, foram arrematados por instituições públicas dois lotes significativos para o património nacional. O primeiro foi precisamente o espólio de Alexandre Herculano, arrematado por 30 mil euros pela Câmara Municipal de Santarém, que tem a intenção de o integrar no Arquivo Municipal. Contudo, a aquisição encontra-se ainda condicionada pela decisão da Biblioteca Nacional de Portugal, que poderá ainda, nos próximos dias, exercer o direito de preferência em nome do Estado.

Outra das peças arrematadas nessa primeira sessão foi o esboço de Os últimos momentos de Camões, de Domingos Sequeira (1768-1837). «Este carvão e giz sobre papel, proveniente da coleção do Marquês de Sousa Holstein, trata-se de um estudo para o quadro com o mesmo título, apresentado em Paris em 1824 e hoje considerado perdido. O estudo foi levado à praça com uma reserva de 400 euros, suscitando interesse de vários colecionadores e acabando arrematado por três mil euros», revela Tiago Silva.

Dado o seu significado histórico e artístico, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) «exerceu o direito de preferência, adquirindo assim a obra». Tal como era desejo do perito, estes dois lotes ficarão doravante «acessíveis para estudo e usufruto pela comunidade», contribuindo para a salvaguarda do património nacional e para o enriquecimento das coleções públicas.