Chineses já podem ter três filhos, mas muitos não têm condições para tal

As mega cidades da China já não são centros de mão de obra barata, onde mais um filho dá sempre jeito. Teme-se que a reversão da política de um só filho não apague os seus estragos.

Não é só a Europa que está a envelhecer, a China também. Os censos de 2020 mostram uns meros 12 milhões de nascimentos, comparado com os 18 milhões em 2016, levando o Partido Comunista da China, de surpresa, a permitir que se tenha até três filhos, esta segunda-feira. Contudo, se a autorização para ter dois filhos – concedida em 2015, relaxando a política do filho único, criada em 1979, face ao receio de o impacto da sobrepopulação, resultando numa tragédia, com milhões de abortos forçados e infanticídios – não parece ter conseguido incentivar a natalidade, não há grandes esperanças que esta medida o consiga.

Os motivos para a quebra demográfica são bastante familiares.

As mega cidades chinesas já não são um mero centro de mão de obra barata, como acontecia há décadas, são cada vez mais populadas por gente qualificada, com ambições profissionais.

À semelhança do que se vê em cidades europeias, ou em outros países na Ásia, “o assunto fundamental é que os custos de vida são muito altos e as pressões enormes”, salientou Hao Zhou, analista do Commerzbank, à Reuters. “Quem é que quer ter três filhos? Os jovens conseguem ter dois filhos no máximo”.

Além disso, a brutal política do filho único – cuja violação podia acarretar multas, perda de emprego e mesmo abortos forçados – talvez tenha transformado a cultura familiar chinesa de uma maneira bem mais profunda do que o Partido Comunista imaginava.

Por um lado, numa sociedade profundamente patriarcal, recorrentemente a opção dos pais era por rapazes em vez de raparigas. Criando um enorme desequilíbrio de género que não ajuda em nada a natalidade.

Por outro lado, ao contrário do que se via no passado, “gerações de chineses viveram sem irmãos e estão habituados a famílias pequenas. A prosperidade significa menos necessidade de ter várias crianças para se tornarem trabalhadores que sustentem a família”, avaliou Stephen McDonnell, correspondente na China da BBC. “E os jovens profissionais dizem que preferem dar a uma criança mais vantagens do que espalhar o seu rendimento entre vários filhos.

Taxas baixas Pequim parece consciente dos problemas por trás das baixas taxas de natalidade chinesa. Prometeram “medidas de apoio, que levem à melhoria da estrutura populacional”, de maneira “cumprir a estratégia do país de ativamente enfrentar o envelhecimento”, até 2025, descreveu a Xinhua. Querem fazê-lo com a diminuição do custo da educação, incentivos fiscais e apoio à habitação, bem como um programa para acabar com a prática do dote, que levava muitos pais a abortar, ou mesmo a matar, bebés do sexo feminino. Mas muitos questionam-se se chega.

“Eu próprio sou produto da política de um só filho”, salientou um utilizador do Weibo, uma espécie de Twitter chinês, citado pelo Guardian. “Já tenho de tomar conta dos meus pais. Onde é que arranjaria energia para educar mais de duas crianças?”.

Agora, na China até se fala de abolir completamente as restrições ao número de filhos. “Para as pessoas que são ricas, relaxar esta política vai encorajá-las a ter mais filhos”, resumiu Vivian Zhan, professora de política na Universidade Chinesa de Hong Kong, à Bloomberg. “Mas para os cidadãos comuns, como a classe média ou mesmo a baixa, eles não têm incentivos suficientes”.

E mesmo o fim da política do filho único não apaga o trauma coletivo que causou na China. “Eu estava em Szechuan depois do terramoto de 2008, o pior desastre em décadas, com mais de 70 mil mortes, muitas delas de crianças”, recordou o repórter Simon Worrall, na National Geographic. “Imediatamente depois do terramoto, pais estavam a correr para ser operados, para reverter as esterilizações e vasectomias que tinham sido feitas na China aos milhões”.