Dia da Criança

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Como sabes, esta semana celebramos o Dia da Criança. Começou a ser comemorado em 1950 (ano de nascimento da minha mãe), por iniciativa da ONU. O intuito é chamar a atenção para os direitos das crianças, nomeadamente a necessidade que estas têm de viver num ambiente de paz e harmonia que contribua para o seu pleno desenvolvimento.

As crianças de 1950 nada tinham a ver com as crianças de agora. Muitas iam à escola esporadicamente, meninos e meninas em salas separadas. As famílias eram numerosas, como tal muitos começavam a trabalhar ainda em crianças. No campo, as meninas mais velhas ajudavam na lida da casa, a tomar conta dos irmãos mais novos, e desempenhavam tarefas que hoje são impensáveis. Os meninos trabalhavam no campo ao lado dos adultos.

Na cidade, era frequente ver as meninas das classes sociais menos abonadas servirem nas casas das famílias ricas. Outras vendiam de porta em porta, lavavam roupa… Os rapazes engraxavam sapatos, faziam entregas, eram ardinas…

Nos anos 70, quando eu era criança, não havia computadores, telemóveis consolas, Internet, tv por cabo, a televisão era a preto e branco, só tinha dois canais e a emissão acabava cedo.

Líamos os livros dos Cinco da Enid Blyton, saboreávamos os primeiros tempos do período pós revolução de Abril, colecionávamos cromos, brincávamos na rua sem os pais terem medo de partirmos a cabeça, tocávamos às campainhas e corríamos a rir…

As crianças de hoje não vão saber o que eram os ardinas, nem o que era escrever uma carta ou um postal, nem um fax ou um telegrama. Não vão saber passar um cheque, nem o que é um telefone fixo. Provavelmente nem vão saber para que serve uma máquina fotográfica.

Cada geração vai sendo diferente da anterior.

Mas o importante é não deixar esquecer como era o antigamente.

Cabe aos mais velhos partilhar com os mais novos as memórias de Portugal.

Todos nós temos uma criança dentro de nós.

Bjs

 

Querido neto,

Quando era miúda, ninguém falava em Dia da Criança. E lembro-me muito bem de muitas terem a vida de que tu falas. A nossa comum amiga Elisa Dias, por exemplo, que depois da 4ª classe andou a trabalhar no campo até casar, e então disse que queria vir estudar. Veio para Lisboa — e, em meia dúzia de anos, fez o liceu e formou-se em engenharia no Instituto Superior Técnico.

Mas aproveito o Dia da Criança para te falar de uma outra criança. Chamava-se Mário, nasceu na Alemanha, no início da guerra, o pai era piloto, a mãe americana. O pai desapareceu em combate, a mãe foi parar ao campo de concentração de Dachau. Mário tinha três anos de idade e ficou completamente sozinho.

Para sobreviver juntou-se a outros miúdos de rua, e com eles roubava, assaltava casas, ameaçava matar quem resistisse, dormia nas ruas. A sua debilidade extrema chamava a atenção das pessoas, e um dia a assistência social mandou interná-lo num hospital. Normalmente quando era internado em instituições, Mário fugia imediatamente e voltava para as ruas. Mas desta vez não teve forças.

Um dia viu um vulto de mulher debruçado sobre a sua cama: era a mãe, que tinha sobrevivido a Dachau e o procurava há anos. Também tinha sido internada ali, e reconhecera o apelido. Quando tiveram alta foram viver com uns irmãos da mãe para os Estados Unidos.

Mário tinha 10 anos, não sabia ler nem escrever, e grande dificuldade em ser sociável. Fugia, sempre que podia, para regressar aos seus antigos vícios. Mas os tios nunca desistiram dele.

Resumindo e concluindo: Mário chama-se Mário Capecchi, tem atualmente 83 anos e, em 2007, ganhou o Prémio Nobel da Medicina. (E, já agora, em 2018 esteve em Portugal — e, acreditem, tem o sorriso mais luminoso que alguma vez vi! E quando lhe falam na sua infância, não renega nada do que passou, sorri e diz apenas, “foi assim, foi assim”).

Penso que são grandes histórias para recordarmos no Dia da Criança.

Bjs