Durão Barroso: “Fase aguda da pandemia deve acabar no princípio do próximo ano”

À frente da Aliança Global das Vacinas, Durão Barroso, que esteve esta semana em Portugal para uma intervenção no Congresso Nacional da Ordem dos Médicos – gravada no Grémio Literário num dia em que foi também homenageado o embaixador José Cutileiro –, revela em entrevista ao Nascer do SOL o cenário com que estão a…

Está desde janeiro à frente da Aliança Global das Vacinas (GAVI) e do mecanismo Covax, que conta garantir o acesso a vacinas dos países mais pobres. Tem corrido como esperava ou mais lentamente?

Há dificuldades objetivas, bem conhecidas. Uma grande parte das vacinas que tínhamos contratualizado tinha origem na Índia, o maior produtor mundial, que por estar a viver uma das situações mais dramáticas suspendeu o fornecimento a outros países. Temos esse atraso, além de outras dificuldades que foram sendo conhecidas, resultado daquilo a que temos chamado o nacionalismo das vacinas – protecionismo, restrições a exportações – e depois problemas com a própria produção, na medida em que está dependente de componentes cuja exportação por vezes não é autorizada. É um assunto complexo mas, dito isto, continuo com esperança de que vamos conseguir cumprir o objetivo.

Assegurar 2 mil milhões de doses a países em desenvolvimento até ao final do ano.

Não será em dezembro, mas poderá ser no início do próximo ano.

Segundo os últimos dados disponíveis, há 170 milhões de doses distribuídas através da plataforma Covax, 80 milhões de vacinas. Como se vai chegar a essa meta num ano?

É a partir de agora que esperamos ter mais doses disponíveis. Neste momento já conseguimos distribuir vacinas a 129 países, o que mostra que é possível fazê-lo. O problema é que até aqui não havia doses suficientes, sendo que  uma das razões foi países mais ricos terem acumulado doses em excesso.

Países como Canadá, EUA, também alguns países europeus…

Na altura não se sabia qual seria a vacina mais eficaz e mais segura e quem tinha meios fê-lo, mas estamos agora a promover uma política de partilha de doses [os EUA anunciaram já esta semana, após esta entrevista, a doação de 80 milhões de doses à plataforma Covax]. São processos que começam lentamente e intensificam-se. Estamos a entrar nessa fase e penso que é o que vamos ver no segundo semestre do ano.

Há o risco de, demorando-se mais tempo a atingir esse objetivo e estando apenas 5,7% da população mundial completamente vacinada, se prolongar também a pandemia pela falta de acesso a vacinas?

Há esse risco. E por isso temos dito, e não é apenas um slogan, que ninguém está seguro até todos estarmos seguros. Enquanto o vírus circular, é maior a probabilidade de infeção ou reinfecção, é maior a probabilidade de surgirem novas variantes que serão possivelmente mais transmissível e perigosas. E é o que estamos a verificar. A variante da Índia está com uma taxa de transmissibilidade no Reino Unido superior àquela que era chamada a variante inglesa.

Foi também identificada no Vietname, um dos países com baixa cobertura vacinal, uma nova variante.

É por isso que, como disse neste congresso da Ordem dos Médicos, estamos a falar de uma questão de justiça e de uma questão de ética. Não é justo, é imoral mesmo, que alguém, porque tem menos dinheiro, morra quando alguém porque tem mais dinheiro e vive num sítio melhor tem acesso a vacinas.

Que relatos lhe chegam?

Tenho falado com muitos chefes de Estado, por exemplo africanos, alguns deles em situações dramáticas. No geral, África tem sido aparentemente menos atingida pela pandemia do que outras regiões. A população mais jovem será uma das explicações. Mas chega-nos esse apelo para que seja possível também  vacinar a população. Agora, é preciso dizer uma coisa: comparando com outros momentos, está-se a fazer melhor. A distância que houve entre o começo da vacinação nos países desenvolvidos e nos países menos desenvolvidos desta vez foi de 83 dias. No passado, em situações comparáveis, foi de vários anos. Por exemplo, no acesso a medicamentos contra o vírus da sida, que levaram vários anos a chegar aos países em vias de desenvolvimento.

Ou mesmo com as  vacinas na pandemia de gripe A.

Sim. Desta vez, o Reino Unido foi o primeiro país a iniciar a vacinação com uma vacina considerada eficaz e segura pelas entidades regulatórias ditas stringent, credíveis, e 82 dias depois a vacina estava a chegar ao Gana e à Costa do Marfim. O problema é que em menores quantidades. E por isso temos de ser objetivos: continua a haver uma injustiça fundamental neste processo.

Estamos a falar de vacinas que custam 15, 20 dólares. Num país em vias de desenvolvimento, alimenta muita gente.

Graças à Covax, e o conceito é exatamente esse, temos conseguido baixar o preço das vacinas. Compramos em massa e as farmacêuticas fazem-nos um preço mais baixo. Além de que é preciso dizer que algumas companhias estão a colocar vacinas a preços de custo. O problema do preço não deveria quase pôr-se. Mais eficaz que qualquer política de expansão orçamental ou de expansão monetária é, neste momento, a política de vacinação, porque é a vacinação que vai permitir a economia voltar a funcionar. Portanto, há um interesse grande, não só dos próprios países, mas da economia mundial em que este processo decorra.

Das próprias farmacêuticas, na medida em que pode normalizar o acesso à saúde.

De todos os setores, das companhias aéreas que estão paradas. Portanto, além de ser uma questão moral partilhar vacinas com quem não tem acesso a elas, é uma questão de auto interesse. É a forma de a economia mundial voltar a arrancar. Faz melhor do que qualquer estímulo artificial. Tenho falado por exemplo com o presidente do Banco Mundial, que diz que há os fundos necessários. Só que é um processo lento porque faz contratos país a país. O FMI e a minha querida a amiga  Kristalina Georgieva, que foi minha comissária cinco anos e é uma mulher com grande vocação humanitária, está a propor aos Governos o aumento dos SDR, Special Drawing Rights, que é a emissão de moeda a nível global que permite maiores empréstimos aos países de menores rendimentos, que com empréstimos bonificados conseguem fazer mais. Tenho falado com vários líderes africanos que me dizem que, se for necessário, pedem um empréstimo, só que o problema até agora é que não havia vacinas.

Isso é uma coisa que muitos interrogam: estivemos nos primeiros meses da pandemia na expectativa das vacinas. Foram aprovadas. Por  que não se massificou a produção, por que não se levantaram patentes como permite a legislação internacional?

Foi um recorde absoluto o tempo que demorou o desenvolvimento destas vacinas. Falava-se de quatro, sete, oito anos em vacinas anteriores, esta demorou dez meses, o que é notável. A primeira vacina, da Pfizer-BioNTech, demorou dez meses entre a sequência do vírus e a autorização. Agora a vacina não deve ser vista como um produto, é um processo. É diferente de um medicamento. Uma das coisas que alguns reguladores verificaram é que a mesma vacina, com a mesma fórmula, não tem exatamente as mesmas características quando produzida em unidades industriais diferentes, inclusive no mesmo país. Isso tem levado a alguns atrasos, que não são atrasos, é o trabalho dos reguladores. Tenho estado em contacto com a OMS, que dá a pré-qualificação, além de acompanhar o trabalho dos reguladores credíveis, que são a FDA americana, a EMA europeia, as agências inglesa, canadiana, australiana, japonesa, islandesa, suíça e são poucos mais.  A verdade é que os atrasos têm uma razão de ser, não são atrasos por preguiça ou lentidão das organizações.

Mas há um forte apelo de há alguns meses a esta parte para serem levantadas patentes das vacinas. O que lhe pergunto diretamente é se os países mais ricos se vão arrepender de não terem apoiado o levantamento de patentes mais cedo.

Em maio de 2020, coassinei uma carta com mais de 140 líderes e especialistas a pedir o levantamento das patentes. Pedi o levantamento de patentes a título temporário para este objetivo de garantir vacina a todos, porque achei que era uma forma de acelerar o processo. Mas o que vemos é que as patentes só por si não resolvem o problema, é tão importante ou mais a transferência de know-how. Uma coisa é a patente – que é, digamos, a fórmula – outra é saber fazer. Já há pelo menos uma farmacêutica, a Moderna, que declarou que se quiserem podem utilizar, que não vão protestar. O problema é que não há capacidade instalada.

Mas considera que não é necessário levantar patentes?

Acho que vai demorar tempo e acho que não se deve ter a ilusão, neste caso concreto, de que o levantamento de patentes resolva o assunto. Para já, tem de haver acordo na Organização Mundial de Comércio. Ainda não há e vai levar algum tempo.

Mas neste momento a União Europeia é o maior obstáculo.

Não sei…

Depois de os EUA terem mudado de posição, não é?

Foi uma mudança de posição interessante. Um país que até hoje, junto com ingleses e outros eram os que  mais se opunham, mudaram sem haver consulta com outros parceiros. Vamos ver.

O que lhe perguntava é se os países se vão arrepender de não terem acelerado a vacinação a nível mundial mais cedo e de isso atrasar o controlo da pandemia.

Acho que a questão é mais funda que a vacinação, se quer que lhe diga. Acho que uma lição que devemos tirar desta pandemia é que o mundo não estava preparado. Mesmo os países mais ricos e poderosos do mundo foram alguns dos mais atingidos, com maior número de mortos.

Por terem populações também mais envelhecidas.

Sim, mas a verdade é que não estávamos preparados. Nas secretárias dos chefes de Estado e de governo de todos os países do mundo há sempre uma lista de riscos a considerar. Ameaças terroristas, a ameaça nuclear e a pandemia também estava lá, mas a verdade é que não estávamos preparados. E as vacinas são um exemplo curioso: este, como se sabe, foi um tipo de coronavírus novo mas já houve outras epidemias de coronavírus.

Aqui há uns meses, um dos membros da direção do Gavi, Seth Berkley, foi um dos autores de um artigo [publicado na Science] sobre a necessidade de uma vacina universal para o coronavírus. Antes desta pandemia já havia esta linha de investigação mas tinha sido suspensa por falta de fundos – neste momento  sei que estão a relançá-la. A comunidade internacional… e não estou a apontar o dedo a A ou B, mas não estávamos preparados.

Mas, nas funções que exerceu, esse cenário era-lhe colocado como algo concreto ou abstrato?

A preparação da resposta às pandemias é uma responsabilidade nacional. Como presidente da Comissão Europeia, acompanhava o trabalho do GAVI. A convite do Bill Gates participei na Conferência Mundial de Vacinas e fui anfitrião em Bruxelas, salvo erro em 2013, de uma pledging conference da Aliança Global das Vacinas. Na altura autorizei a transferência de alguns fundos que tínhamos do orçamento do desenvolvimento. Agora a Comissão Europeia praticamente não tinha orçamento nenhum para a saúde pública. Espero que este grito de alarme da pandemia leve os Governos a dar à saúde pública a prioridade que merece como bem público global.

É daqueles bens públicos em que, independentemente das diferenças políticas, ideológicas e de regime, devia haver um acordo para que se trabalhava em conjunto. Na intervenção no congresso da Ordem dos Médicos, cito uma frase bem conhecida de Oscar Wilde. Dizia, já no tempo dele, que estamos numa sociedade em que se sabe o preço de tudo e o valor de nada. Talvez agora as pessoas comecem a dar valor ao que tem mais valor e nada tem mais valor do que a vida humana.

Quando vemos o número de mortos e o sofrimento causado pela pandemia, para já não falar da devastação económica que representa, só o impacto que isto teve do ponto de vista humano talvez leve a pensar em dar mais prioridade à prevenção e às questões da saúde pública em geral. E iria mais longe: esta pandemia tem uma dimensão de algum modo existencial. As pessoas tiveram medo.

E ao mesmo tempo há um aspeto paradoxal: toca o mundo inteiro e estamos todos ligados ao que se passa mas é a pandemia do isolamento, em que os avós não podem ver os netos e em que morreram velhos acho que às vezes por descuido dos governos e isso a mim revolta-me. No fundo, no fundo, embora nem muita gente queira admiti-lo, houve momentos em que ficou a ideia de que a vida de uma pessoa idosa vale menos que um jovem. Não aceito isso. Para mim, todas as vidas têm a mesma dignidade.

Sentiu-o em Portugal?

Não, não falo relativamente a Portugal. Foi uma acusação feita em relação a alguns países, que pensavam em praticar a imunidade de grupo. É uma pandemia que vem colocar questões existenciais sobre como nós, humanos, nos relacionamos uns com os outros e nos relacionamos com o ambiente. A verdade é que não se conhece ainda bem a origem da pandemia mas uma das possibilidades é a emergência do vírus associado a certos mercados de animais. É a altura de passarmos a ver de forma integrada todos estes aspetos, a relação dos humanos uns com os outros e com a natureza. E acho que vai haver condições para isso. Por um lado, nas sociedades mais ricas e desenvolvidas, a inversão demográfica leva a que haja cada vez um número maior de pessoas idosas, que naturalmente se preocupam mais com a saúde do que quando eram novas. Eu hoje preocupo-me muito mais com a minha saúde do que quando tinha 15 ou 16 anos. Por outro lado, a gente nova hoje preocupa-se muito mais com o ambiente do que se preocupava a minha geração. Por isso talvez se estejam a reunir condições para que haja uma atitude diferente em relação a estes problemas.

Mas ao mesmo tempo há os movimentos nacionalistas que referiu, que mostram que se calhar não se aprendeu assim tanto.

Pois e por isso é que costumo dizer que temos de defender os nossos países, devemos ser patriotas, mas temos de ter uma consciência que vá além dos nossos países. Somos cidadãos europeus, cidadãos do mundo. Se me perguntar, o que vai acontecer depois disto? Não sei, depende do que fizerem as pessoas, os líderes e as sociedades, porque esta coisa de estar sempre a deitar a culpa para os outros não leva a lado nenhum. Mas vejo, no meio de toda esta situação terrível, sinais de esperança. Um sinal de esperança é a ciência e tecnologia. Ainda há muitos céticos, há vozes obscurantistas, mas o progresso que a ciência conseguiu foi notável. E o progresso que vai conseguir. Por exemplo esta plataforma MRNA, usada em algumas vacinas da covid-19, pode ajudar noutros problemas médicos.

No VIH, por exemplo, há a expectativa de poder acelerar uma vacina.

Sim, há quem diga isso. A inteligência artificial vai ter um impacto muito importante pelo que permite de agregação de dados. Nesse aspeto continuo a ser uma pessoa muito confiante. É muito melhor ter nascido, como já nasci, com antibióticos e com anestesias do que antes. E estou convencido que as gerações futuras vão ter hipóteses muito melhores do que as nossas.

Em relação à pandemia, imagino que tenham painéis de aconselhamento. Traçavam-vos algum cenário para o que pode acontecer, por exemplo se não for atingida a meta dos 2 mil milhões de doses…

Não, não se pode fazer uma quantificação rigorosa porque há incógnitas, por exemplo a hipótese de aparecerem variantes resistentes às vacinas. O cenário com que estamos a trabalhar é que a fase mais aguda da pandemia esteja controlada no início do ano que vem. Mas é um cenário puramente indicativo ou se quiser, como se diz em inglês, aspiracional. Aspiramos a isso.

No mundo.

Sim, que a fase mais aguda da pandemia esteja controlada a nível  global. Não quer dizer que não haja infeções, até porque, de acordo com os especialistas, a expectativa é que o vírus se torne endémico, continuemos a viver com ele, mas sem esta acuidade e gravidade de mortes, hospitalizações e ameaça ao funcionamento dos serviços de saúde. É com este cenário que estamos a trabalhar.

Portanto, não se está a preparar para festejar já este verão a ideia de imunidade de grupo nos países mais desenvolvidos, com 70% da população adulta vacinada.

Não, até porque o mundo não se consegue fechar. Em Inglaterra, apesar do sucesso extraordinário do programa de vacinação, que tem sido dos melhores do mundo – e vivo em Inglaterra – há um aumento de casos.

Já está vacinado?

Tenho a primeira dose, mas no Reino Unido as pessoas da minha idade já estão e alguns com 30 ou menos também. Vou tomar a segunda dose no dia 22 de junho. Estava em Portugal e só fui vacinado depois. Apesar de Inglaterra estar muito mais vacinada do que outros países teve agora um surto da estirpe indiana. É por isso que tudo isto tem de ser visto, como se diz em latim, cum grano salis, com grande cuidado.

O próximo inverno ainda vai ser exigente?

Isso os especialistas saberão melhor do que eu, mas o que espero é que seguindo-se o roll out das vacinas, a fase aguda possa acabar no início do próximo ano.

O primeiro-ministro disse recentemente que a União Europeia tem sido exemplar na contribuição para o mecanismo Covax. Tem?  

Tem dado um apoio sem falhas.

Mas é o maior apoio?

É um dos maiores apoios. Se juntarmos todos os países mais a contribuição dada em nome da União Europeia, é, mas em termos individuais a maior contribuição é dos EUA, que já disponibilizaram 2+2 mil milhões de dólares. Quando falamos da UE, temos de ver de que falamos, se falamos da contribuição da comissão do orçamento da EU ou nos estados. A Alemanha, por exemplo, reforçou imenso, tem sido muito generosa.

E Portugal?

Tem dado em relação à sua dimensão. Comprometeu -se também a partilhar vacinas com os PALOP. Tenho mantido um contacto muito direto com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que tem mostrado uma grande capacidade de liderança nesta matéria.