Biblioteca Pessoal: Lafcadio e o fascínio da estranheza

Nascido na Grécia e criado na Irlanda, Lafcadio Hearn fez nome como jornalista de crimes na América. Terminou os seus dias no Japão, a escrever histórias de fantasmas e estudos de insetos.

E m tempos comprei, numa livraria que eu gostava de frequentar mas já não existe, um livrinho cor de tijolo intitulado: O Japão – uma antologia de escritos sobre o país. Com pouco menos de 200 páginas, fala sobretudo dos encantos naturais do Japão, do canto dos pássaros, dos bosques sagrados, de todo o tipo de animais e até das pedras. Deixo alguns excertos para que o leitor perceba o tom: «O jardim japonês é ao mesmo tempo uma pintura e um poema»; «O grasnido do pombo bravo […] é o queixume mais doce que alguma vez chegou aos meus ouvidos»; «As pequenas rãs que repousam nos nenúfares não se encolhem quase nada quando as toco; os lagartos deixam-se estar ao sol ao alcance da minha mão; as cobras aquáticas deslizam pela minha sombra sem qualquer medo […] e um louva-a-deus pousa indolentemente no meu joelho».

Uns tempos depois da aquisição, vim a descobrir que este livro tem o seu pendant, O Japão – uma antologia de escritos sobre as gentes. E, por muito que me agrade possuir o primeiro, deixa-me uma sensação de desconforto faltar-me o segundo (que se encontra esgotado), como se fosse um sapato a que faltasse o par.

O autor deste díptico sobre o Japão é Lafcadio Hearn, um autor nascido em 1850 na ilha de Leucadia (ou Lefkada), na Grécia, filho de pai irlandês e mãe grega. O progenitor, um cirurgião, nesse mesmo ano foi destacado para as colónias britânicas nas Caraíbas e deixou a família para trás. Em 1852, mãe e filho instalaram-se em Dublin, apenas para esta, poucos tempo depois, quando o filho tinha seis anos, regressar à Grécia. Lafcadio ficou primeiro com o pai, entretanto regressado, e acabou entregue a uma rica e excêntrica tia-avó.

Numa brincadeira, em miúdo, a ponta de uma corda acertou-lhe num olho. Míope como era, quase deixou de ver. Mesmo assim, ainda adolescente, trocou a vida protegida junto da tia-avó rica pela independência em Londres, onde passou dois anos na miséria.

Antes de completar vinte anos, rumou à América. Detestou Nova Iorque e ficou para sempre com um profunda repulsa pelo mundo moderno. Mudou-se para Cincinnatti, Ohio, onde encontrou abrigo num armazém nas traseiras de uma gráfica – o proprietário deixava-o dormir em cima das pilhas de papel. Um dia, experimentou submeter um artigo da sua pena. Foi aceite. Em cerca de um ano tornou-se uma estrela do jornalismo local.

Ao contrário do que dão a entender as suas idílicas descrições da natureza no Japão, Lafcadio não era um espírito pacífico. Em Cincinnatti ganhou fama a escrever reportagens salpicadas de sangue e de pormenores escabrosos sobre crimes ignóbeis. Já com nome feito, decidiu trocar aquela cidade por Nova Orleães, pela qual se apaixonou. Mas a inquietude e o apelo do exótico eram ainda mais fortes. Navegou para a Martinica e, por fim, para o Japão.

Tão violenta quanto os crimes que gostava de descrever foi a carta que enviou aos seus editores da Harper’s – revista para a qual tinha escrito e com a qual tinha acordado enviar artigos sobre o Japão – pouco depois de chegar àquele destino. Entre outras coisas irreprodutíveis chamava aos seus antigos patrões«bacias de mijo com pegas partidas e o fundo sucatado, ignorantes com almas de lodo compostas de dezassete tipos diferentes de m*rd*».

Continuo à procura do segundo volume da antologia sobre o Japão, mas encontrei, em compensação, o último livro que Lafcadio publicou em vida, Kwaidan – histórias e estudos de coisas estranhas. Composto por 14 histórias com um forte sentido do bizarro e três estudos dedicados aos insetos (borboletas, formigas e mosquitos), o livro faz jus ao título. Ao que tudo indica, foi entre as lendas estranhas e os costumes estranhos do Japão que este autor com um nome estranho e uma vida ainda mais estranha encontrou o seu habitat natural.