Hungria “aranycsapat”. A derrota impossível do futebol dos mágicos

O primeiro adversário de Portugal neste Campeonato da Europa – próxima terça-feira, em Budapeste – já foi a melhor equipa do mundo. Entre 1950 e 1956, ganhou 42 jogos, empatou 7 e só perdeu um, precisamente o mais importante de todos, na final do Mundial de 1954, frente à Alemanha Ocidental 

BUDAPESTE – «Aranaycsapat» – por alguma razão o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro ao trono do Império Áustro-Húngaro assassinado em Sarajevo, dizia que ouvir duas pessoas a discutir em húngaro era igual a ouvir rajadas de metralhadora. Traduzamos simplesmente por Equipa de Ouro. A grande Hungria que durante cerca de seis anos se entreteve a desfazer todos os adversários que lhe passaram pela frente. Deram-lhe alcunhas como quem dá cerejas: Os Mágicos Magiares; Os Magníficos Magiares; Os Maravilhosos Magiares; A Cavalaria Ligeira… Os magiares eram um grupo étnico que se instalou na zona geográfica da Hungria (que se apelida a si própria de Magyarország) antes de surgirem as tribos conhecidas pelos turcos como On-Ogur (As Dez Flechas ou As Dez Tribos), que vieram desde os Montes Urais assentar raízes na mesma região banhada pelo Danúbio. O nome ficou e os húngaros orgulham-se dele. 
Agora, em Budapeste, capital da Hungria, Portugal prepara-se para defrontar a seleção local no Estádio Ferenc Puskás na primeira jornada da fase de grupos deste Europeu que deveria ter sido disputado no ano passado e foi chutado para este ano por via da maldita pandemia que nos apanhou a todos distraídos na esquina da vida a tocar a concertina e a dançar o solidó. Uma Hungria que não assusta mais. O tempo passou, irreversível como sempre. Mas a História não esquece os nomes: Ferenc Puskás, Sándor Kocsis, Nándor Hidegkuti, Zoltán Czibor, József Bozsik and Gyula Grosics. Esquecê-los seria um crime contra o futebol.

Entre 1950 e 1956, a seleção comandada por Gusztáv Sebes, nascido Gusztáv Scharenpeck, em Budapeste, no dia 22 de janeiro de 1906, antigo jogador do MTK Hungária e que passou a ser o responsável técnico pela equipa em 1949, cometeu a impossível proeza de vencer 42 jogos, empatar 7 e perder apenas um. Infelizmente para aquele grupo de homens que apresentaram ao universo a primeira versão do Futebol Total, a derrota sofrida foi no jogo impossível: a final do Campeonato do Mundo de 1954, frente à Alemanha Ocidental, por 2-3. Mas já lá vamos.

Sebes, que antes da II Grande Guerra chegara a chefe do sindicato dos trabalhadores da marca de automóveis Renault, em Paris, era um sujeito disciplinador ao milímetro. Mal se viu ao comando de um conjunto de jogadores de técnica apuradíssima, dos melhores que alguma vez tinham aparecido sob o sol, tratou de os obrigar a um regime de preparação física e  alimentar que pudesse tirar o máximo partido das suas características. Mas Gusztáv era muito mais do que um estudioso das características físicas dos jogadores. Foi um autêntico revolucionário da tática que quase todas as equipas e seleções do mundo haviam adotado na altura, o WM, sistema criado pelo inglês Herbert Chapmann e que alterara o equilíbrio de forças no futebol britânico a favor do clube que orientava, o Arsenal.

Sebes transformou o até então rígido WM num 2-3-3-2, exigindo aos avançados que recuassem para fugir às marcações dos centrais contrários, surgindo-lhes de frente com a bola dominada em vez de esperarem pelos passes dos médios e dos extremos para lutarem por ela. Além disso, programava sessões de treino nas quais fazia os seus jogadores trocarem frequentemente de posições, defendendo a ideia de que todos os jogadores deveriam saber desempenhar na perfeição qualquer posto que lhe fosse confiado.

Rapidamente, os resultados começaram a surgir. Entre 8 de maio e 20 de novembro de 1949, a Hungria ainda em estádio de embrião tratou de esmagar a Áustria (6-1) e empatar com a Itália (1-1) para a Taça da Europa Central, uma competição para seleções entretanto desaparecida, e obter o seguinte registo numa série de jogos ditos amigáveis: Suécia (2-2); Polónia (8-2); Áustria (4-3); Bulgária (5-0) e Suécia (5-0). A avalanche preparava-se para assolar a Europa e o mundo.

Campeões Olímpicos!

A destruição provocada pela II Grande Guerra tirou algumas seleções do centro da Europa da fase de qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo a disputar no Brasil em 1950. A Hungria foi uma delas. Ainda por cima quando tinha sido finalista do último Mundial antes do conflito – França, 1938 – perdendo a final para a Itália (2-4).

Enquanto o Uruguai batia o Brasil (2-1) num Maracanã com mais de 200 mil espetadores, os magiares começavam a preparar-se para a grande competição que se seguia, o torneio dos Jogos Olímpicos de 1952, que teriam lugar na Finlândia. Puskás diria mais tarde: «Foi durante os Jogos que o nosso futebol assumiu a sua verdadeira potência». E também foi depois de ver a Hungria jogar nessa fase final que Stanley Rous, o presidente da The Football Association, mais tarde presidente da FIFA, teve a ideia brilhante de convidar os húngaros para se deslocarem a Wembley onde disputariam com a Inglaterra o chamado Jogo do Século.

Entretanto, na fase de preparação para a competição, após golearem a Checoslováquia por 5-0, os Mágicos Magiares tiveram de engolir o orgulho ao perderem em Budapeste, frente à Áustria (3-4), seu velho parceiro de Império, no dia 29 de outubro de 1950. Serviu-lhes de lição. Daí até se apresentarem em Helsínquia, empataram com a Bulgária (1-1), bateram a Polónia  por 6-0, a Checoslováquia por 2-1, a Finlândia por 8-0, a Alemanha Ocidental por 5-0, outra vez a Polónia por 5-1 e mais 6-1 à Finlândia. Não havia dúvidas: estavam prontos!

A conquista da medalha de ouro nos Jogos de 1952 foi simplesmente arrasadora: em Turku, 2-1 à Roménia (golos de Czibor e Kocsis); em Helsínquia, 3-0 à Itália (Palotás, 2, e Kocsis); em Kotka, 7-1 à Turquia (Palotás, Kocsis, 2, Lantos, Puskás, 2, e Bozsik); em Helsínquia, 6-0 à Suécia, que fora quarta qualificada no Brasil (Puskás, Palotás, Lindh, na própria baliza, Kocsis, 2, e Hidegkuti; e na final também em Helsínquia, 2-0 à Jugoslávia (Puskás e Czibor). Não havia argumentos que contrariassem um vendaval destas dimensões. E Sir Stanley Rous não sabia no sarilho que se estava a meter quando convidou a equipa de Sebes para ir jogar a Londres.

Os Jogos do Século!!!

O encontro provocava a excitação de qualquer alma penada do planeta que gostasse de futebol. Não havia quem não estivesse disposto a dar a sua opinião sobre o que aconteceria em Wembley, ainda que faltasse mais de um ano para a data agendada para o acontecimento – 25 de novembro de 1953. Até lá, os Mágicos foram continuando a lavrar os relvados da Europa como as patas do cavalo de Átila. Onde jogavam, a relva não voltava a crescer – Suíça (4-2), Checoslováquia (5-0), Áustria (1-1), Itália (3-0), Suécia (4-2), Bulgária (1-1), Checoslováquia (5-1), Áustria (3-2), Suécia (2-2). Nunca se vira e nunca mais se viu uma voragem tamanha pelas balizas contrárias. Golos atrás de golos atrás de golos. 

Quando desembarcaram em Londres, os húngaros puderam perceber que havia, da parte da imprensa britânica, uma certa complacência. A derrota por 0-1 com os Estados Unidos no Mundial do Brasil não fizera baixar a crista da vaidade aos ingleses que recordavam, isso sim, que só uma vez na sua história haviam sido derrotados em casa, pela Irlanda, em 1949. Mais de 100 mil espetadores apertavam-se nas bancadas de Wembley. Logo no primeiro minuto, Nándor Hidegkuti, que ocupava o lugar de avançado-centro móvel, fez 1-0 para a Hungria. O mote estava dado. Entrava pelos olhos dentro que o férreo WM do selecionador Walter Winterbottom estava condenado ao fracasso perante a mobilidade dos rapazes de Sebes. Ainda assim, aos 15 minutos, Jackie Sewell bateu o keeper Gyula Grosics e devolveu a alegria aos da casa. Curta alegria. A superioridade dos húngaros era tão clara como os olhos da Michelle Pfeiffer. E Hidegkuti e Puskás trataram de dar um avanço confortável nos nove minutos que se seguiram. 
Boquiabertos, os adeptos ingleses assistiam à destruição, peça por peça, do seu conjunto que julgavam ser o melhor do mundo. Puskás fez o 1-4 e Mortensen reduziu para o 2-4 com que se chegou ao intervalo. O segundo tempo limitou-se a ser um espelho do primeiro. Boszsik, aos 50 minutos, e Hidegkuti, aos 53, atingiram a meia-dúzia.  Ramsey, aos 57 minutos, de penalti, só conseguiu tornar o resultado final um pouco menos humilhante: 3-6. Bobby Robson, que assistira ao encontro tão pasmado como os seus compatriotas, diria no final: «We saw a style of play, a system of play that we had never seen before. None of these players meant anything to us. We didn’t know about Puskás. All these fantastic players, they were men from Mars as far as we were concerned».

Podiam ter vindo de Marte para humilhar a ínclita empáfia britânica, mas Stanley Rous não estava convencido. Na sua visão das coisas, a Inglaterra havia sido apenas surpreendida pela evolução de um sistema tático que os ingleses tinham inventado. A diferença entre conjuntos não podia ser tão grande. A desforra ficou desde logo marcada para Budapeste, no dia 23 de maio de 1954.

90 mil pessoas encheram o Nepstadiom e assistiram ao vivo ao maior avacalhamento da seleção de Inglaterra. Lantos (10m), Puskás (17 e 71m), Kocsis (19 e 57m), Hidegkuti (59m) e Tóth (63m), abafaram o golo de Broadis (68m) e atingiram a enormidade de 7-1. Afesta húngara espalhou-se pelas ruas de Budapeste. Ninguém tinha dúvidas que o caminho estava escancarado para a vitória no Campeonato do Mundo cuja fase final seria na Suíça no mês seguinte.
O caminho para a final foi dando razão ao otimismo: 9-0 à Coreia do Sul e 8-3 à Alemanha Ocidental na fase de grupos; 4-2 ao Brasil nos quartos-de-final; 4-2, após prolongamento, aos campeões do mundo uruguaios nas meias-finais. No dia 4 de julho de 1954, de novo frente à Alemanha Ocidental, que levara os tais oito logo no início, no Wankdorf Stadium de Berna, nada parecia fugir aos padrões tradicionais da equipa dos Mágicos Magiares: aos 6 minutos, Puskás fez 1-0; aos 8 minutos, Czibor fez 2-0. Por quantos ganharia a Hungria a marcar golos nesse ritmo?, era a pergunta que se propagava por toda a parte. De repente, a Alemanha, comandada por um treinador astuto chamado Sepp Herberger, revolta-se. Morlock reduz aos 10 minutos e Rahn empata aos 18. Não há quem consiga tirar os olhos do relvado. A Hungria ataca ferozmente, as oportunidades sucedem-se, Puskás acerta na barra, Kohlmayer tira duas bolas chutadas por Tóth sobre a linha de golo. O tempo passa. A seis minutos do final, Rahn aproveita o espaço aberto no meio campo húngaro e faz o 3-2. Inacreditável! Puskás e Kocsis obrigam o guarda-redes Turek a defesas incríveis. 

De nada lhes valeu: jogo impossível estava perdido! l