Aldeia Mágica: De Cascais a Bolama

O percurso de Alexandre Faria, presidente do Estoril Praia e apaixonado pela Guiné-Bissau, é ele mesmo uma viagem de Cascais a Bolama, que inspirou o seu romance Aldeia Mágica. 

Nas ruas de Bolama, uma pequena cidade no arquipélago das Bijagós, na Guiné-Bissau, toda a gente conhece Alexandre Faria, presidente do Grupo Desportivo Estoril Praia. A história que une este advogado e gestor cascalense a Bolama em particular, e à Guiné-Bissau em geral, é antiga, construída sobre uma amizade dos tempos de faculdade.

Foi algo que seria transformado numa relação institucional, tornando Bolama cidade irmã de Cascais, no tempo em que Faria era vereador de relações internacionais da Câmara de Cascais, entre 2009 e 2013, e que inspirou boa parte dos seus livros de ensaios, coletâneas de poesia e romances. Em particular a Aldeia Mágica (Poética Edições, 2019), um romance sobre Daniel, um homem que embarca numa viagem de Cascais a Bolama.

«Não fugi daquilo que muitos autores fazem, acabam por produzir algo com muitas passagens autobiográficas», admite Faria, que em maio voltou à Guiné-Bissau e à sua querida Bolama – para receber o diploma de mérito cultural da secretaria de Estado da Cultura e o diploma de mérito cultural da cidade Bolama – acompanhado por Ismael Mendes de Medina, o advogado e amigo que o apresentou à cidade, com o Nascer do SOL a reboque.

Medina não esconde o orgulho desse laço, que vem de quando eram jovens estudantes na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mais conhecida como Clássica, correndo juntos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) de lés a lés, em projetos de voluntariado, que iam de Moçambique à Guiné-Bissau. Nesses tempos – como sempre, diga-se de passagem – Ismael não parava de falar de Bolama. «Eu sempre lhe disse: um dia, quando conheceres a minha terra vais ficar apaixonado», conta Medina. «E a profecia realizou-se», acrescenta, entre risos. 

Faria ia ficando cada vez mais curioso – até que teve finalmente uma oportunidade de visitar a cidade, quando procurava mais uma cidade irmã para Cascais, para completar o périplo dos países lusófonos – o município português já era geminado com o Sal, em Cabo Verde, Xai-Xai, em Moçambique, Cantagalo, São Tomé e Príncipe. Faltava Angola, onde Faria nasceu, e a Guiné-Bissau

«Fiquei imediatamente deslumbrado com Bolama», recorda. «Não acredito que haja alguém que tenha possibilidade de ir a Bolama, que volte e se esqueça daquela cidade. Por alguma razão os ingleses e portugueses andaram a disputá-la durante tanto tempo. Não era só por razões geoestratégicas, era também pelo enorme potencial que tem», nota Alexandre Faria.

Afinal, falava da antiga capital do império português na Guiné, construída como um ex-libris no meio de ilhas paradisíacas, deixada quase ao abandono quando a Administração Colonial passou para Bissau, em 1941, vendo a sua população a encolher para menos de cinco mil habitantes.

«É impossível chegares àquela praça central, ver o edifício do conselho municipal em ruínas e não ficares absolutamente rendido, ao ver aquela arquitetura clássica, com gado a pastar, ou a veres pessoas de véu a passar, ao pé de uma igreja importantíssima que há ali, que está a viver agora o seu jubileu», descreve Faria. «Fiquei de imediato com a sensação que Bolama é um dos maiores berços culturais de toda a lusofonia e dos mais esquecidos».

«É impossível não te sentires bem lá, porque qualquer bolamense te torna um dos seus no momento em que desembarcas no cais, e trata-te como tal. As ilhas têm muito isso, mas aquela em particular», garante. «O protagonista da Aldeia Mágica tem um certo momento em que, quando troca impressões com a primeira pessoa que conhece, lhe dizem: ‘Agora és um de nós’. Não há hipótese».

Daniel, o protagonista do livro, «parte de Cascais, porque sofre um determinado problema emocional que o leva a procurar o mundo, a arranca por ali fora, sem destino e interrompe o seu percurso quando chega ali. E não é inocente que isso tenha acontecido», continua o autor, que fez o seu personagem passar por Bolama para fazer uma entrega de peixe – fazer entregas em nome de amigos, primos ou tios, é uma inevitabilidade para quem quer que viaje na Guiné-Bissau, um país pequeno, onde os correios praticamente não existem, mas toda a gente se conhece.

«Só ali é que alguém se poderia sentir tão imediatamente em casa, independentemente da sua nacionalidade, religião e objetivos», assegura Faria, com um tom saudoso. «A Aldeia Mágica não podia acontecer em mais lado nenhum que não Bolama, porque o encanto e fascínio que esta cidade exerce é muito difícil, senão impossível, encontrar noutro local». 

Laços de amizade

 

A relação entre Cascais e Bolama, após a geminação, foi florescendo. Entre os pontos altos esteve o envio de três ambulâncias e duas viaturas para os serviços de emergência da ilha, com o apoio da Câmara de Cascais, dos bombeiros e do Estoril Praia. Dadas as duras condições no hospital de Bolama, as ambulâncias, bem apetrechadas, até começaram a servir como sala de operações e maternidade.

«É como se as crianças nascessem em Cascais», brinca Faria. E depois, quando essas crianças crescerem, podem ir passear com as suas famílias pela rua de Cascais, como foi nomeada uma das principais vias de Bolama, junto da praça central.

E, mesmo ali ao lado, fica a Pró-Bolama, uma ONG local, nascida há dez anos por iniciativa de Medina – nascido em Bolama mas cascalense orgulhoso, tendo vivido 17 anos da sua vida no município – com apoio do seu amigo Faria, «membro honorário n.º 1», diz o advogado guineense. 

 A Pró-Bolama sonha criar os meios para transformação de pescado na ilha, para subir na cadeia de valor, incentivar à produção de galinhas, diminuir a dependência alimentar, aumentar a viabilidade comercial da produção de caju e misérias – um fruto típico, ácido mas muito mais apetitoso que o nome indica – ou formar jovens em mecânica de motores, em particular de motos e barcos, essenciais para a mobilidade aqui, para os reter na região. Mas talvez a sua maior ambição seja criar uma rede de transportes, incluindo até ilhas onde o acesso só é possível apanhando boleia de pescadores.

«Essa é uma dificuldade para as ilhas, tanto a navegação entre elas, como o acesso, não só a guineenses como também a quem quer visitar as ilhas, para partilhar deste arquipélago com uma dificuldade incrível», admite Faria. Aliás, no seu livro, Daniel chega a Bolama de jipe, vindo de uma longa viagem através de Marrocos, Mauritânia, Senegal e Gâmbia – ainda que na realidade, mesmo com a maré baixa, seja impossível fazer essa travessia, só mesmo de barco, muitas vezes até nas tradicionais canoas de madeira. 

Um dos feitos de que Faria mais se orgulha, a criação em Bolama da maior biblioteca pública municipal de toda a Guiné-Bissau, com mais de 40 mil livros, com apoio da Câmara de Cascais, quase se tornou impossível pelo desafio de cruzar o mar.

«Foi uma aventura, que teve uma ajuda preciosíssima do Carlos Gomes Júnior», então primeiro-ministro guineense, que nasceu em Bolama e viveu em Cascais, conta Faria. «Ele conseguiu que um barco especial, com uma proa que baixava, desembarcasse no cais da ilha com os contentores. Senão tinha sido praticamente impossível, porque levar os livros por outros meios teria demorado uma eternidade».

Além disso, ainda conseguiram fundos para criar a rádio comunitária de Bolama, dotando-a de painéis solares – na ilha, falta frequentemente a eletricidade e o combustível para os geradores.

«A rádio lá é absolutamente fundamental, não só em Bolama, no país todo. Não há os jornais a que estamos habituados, não há correios, não há outra forma de passar mensagens», explica o autor de Aldeia Mágica. «No livro, há sempre alguém de rádio encostado ao ouvido, aqueles velhos rádios de pilhas. Porque é daí que vêm todas as notícias do mundo, do que se passa em Bissau e no resto do país, é o elo de ligação com o quotidiano que nós vemos na televisão».

Talvez por as pessoas não estarem constantemente a ser bombardeadas com informação, em Bolama «parece que o tempo fica como suspenso, o ritmo amolece, mas as pessoas não deixam de estar atentas. Talvez até estejam mais», diz Faria. E é muito essa a sensação que nos deixa o seu livro, de uma sociedade pacífica, num país tão diverso e tranquilo como a Guiné-Bissau. Mas não deixa de haver os seus sobressaltos – nem que sejam ficcionados, como aconteceu com Daniel, personagem principal do livro, que se confrontou com uns traficantes colombianos.

«A questão do narcotráfico na Guiné-Bissau é incontornável, por isso é que não poderia deixar de a colocar na Aldeia Mágica», explica o autor. De facto, o país tornou-se um eixo no tráfico, dado ter mais de 80 ilhas nas Bijagós – a maioria delas desertas, ideais para descarregar produtos em segredo – e uma ligação histórica do norte do país ao Sahel, e como tal às rotas que atravessam o Saara até à Europa. 

Ainda que pouquíssima droga fique na Guiné-Bissau – é um país de baixo consumo e baixa renda, com um mercado interno nada atrativo para traficantes – o grande problema «é a onda de suspeição que isso gera em volta do país», queixa-se Faria. «A Guiné-Bissau é um país extremamente pacífico, que vivo desde 1995 e onde nunca assisti a nenhum problema de criminalidade ou violência na rua, sobretudo com pessoas estrangeiras».

Aliás, de tal modo a sociedade é pacífica, sobretudo em Bolama, com convivência e mistura das mais diversas etnias e religiões, que esse foi um dos motivos que impeliram Faria a ter a cidade como palco do seu romance.

«As personagens que estavam a surgir-me na cabeça tinham de encontrar um local absolutamente mágico e diferente de tudo o resto, no processo de criação de uma utopia. Tinha de ser num sítio onde fosse algo possível», descreve. E, dada a sensação de abandono deste marco da lusofonia, foi por isso que o presidente do Estoril Praia sentiu que talvez o melhor contributo que tivesse a oferecer a Bolama fosse um conto. Porque «uma cidade feita dos mitos e impulsos que cada um de nós pode dar. E era isso que queria fazer com a Aldeia Mágica».