O Lord que rebentava canelas

Apelidaram-no, muito caridosamente, de um exemplar musculoso de cristão… Digno das ‘Escrituras’

Kinnaird era um Lord e, por princípio, embora não exclusivo, os Lords não costumam ser tão estúpidos como os barões do Camilo Castelo-Branco. Arthur Fitzgerald Kinnaird, 11.º Lord Kinnaird. Há quem o considere a primeira grande estrela da história do futebol e, ao olhar para a sua figura rotunda, as suas barbas de caifás, e o seu olhar ligeiramente porcino, ficamos na dúvida, mas que remédio aceitar como boa a opinião dos que o viram conquistar cinco Taças de Inglaterra – 1873, 1877 e 1878 com a camisola dos Wanderers; 1879 e 1882 com o jersey do Old Etonians.

Parece que o 11.º Lord Kinnaird tinha tempo de sobra na sua vida atarefada. Ao ponto de ter acumulado tachos atrás de tachos, desde presidente da The Football Association durante nada menos de 33 anos, a diretor da YMCA e YWCA (Young Men’s Christian Association e Young Women’s Christian Association) inglesas, vice-presidente do Barclays’s Bank, Alto Comissário da Assembleia Geral da Igreja Escocesa, Coronel Honorário da Tay Division Submarines e membro voluntário da Royal Engineers baseada em Dundee, além de ter sido condecorado com o título deCavaleiro de Thistle, em 1914. Vendo bem, quase todos esses cargos parecem acarretar consigo uma daquelas grandessíssimas estuchas de que falava o Alencar, do divino Eça. Tendo nascido no seio de gente finíssima, filho do 10.º Lord Kinnaird, Arthur, banqueiro e membro do Parlamento, e de Mary Jane Kinnaird, a fundadora da YWCA, passou a vida a ser injetado pelas regras mais restritas da sociedade vitoriana, primeiro na Cheam School, depois no Colégio de Eton e, finalmente, no Trinity College, tendo-se graduado em Cambridge. Convenhamos: o mamífero tinha todas as condições para ser um chato de primeira apanha, uma daquelas espécies de pavões britânicos que podem dar muito jeito para enfeitar jardins mas não têm conversa para lá do tempo que vai fazer no weekend quando têm preparada uma receção de truz a outra dúzia de aves da família dos phasianidae. E, no entanto, Arthur Jr. não era assim. Muito por culpa do futebol, há que dizê-lo.

Aos 12 anos, já o nosso figurão era capitão da equipa de fedelhos da Cheam School. Ganhou a braçadeira à força do grito. Tinha, apesar da tenra idade, um vozeirão digno de Chaliapin e esbracejava a torto e a direito com os braços em moinho, indicando aos infelizes que comandava em que lugar do campo se deviam dispor. Uma vitória estrepitosa contra os vizinhos da Harrow School puseram-no debaixo do braço protetor do treinador, mas a transferência para Eton não foi acompanhada pela evolução do seu estilo brutamontes, motivo que veio a afastá-lo da equipa principal da instituição.

Teimoso, absolutamente convencido de que nascera predestinado para o cada vez mais popular association, Arthur foi tentar a sua sorte como jogador do Wanderers, um clube de Upper Norwood London formado maioritariamente por gente que saíra das escolas públicas de todo o país. Aliás, Kinnaird nasceu em Kensington, nesse bairro elegante londrino, mas a única vez que disputou um jogo entre seleções decidiu defender a equipa da Escócia, vá lá saber-se porque carga de água, coisa que por lá abunda. As cargas de água, quero dizer.

Escreveu quem o viu jogar que era dos mais violentos tacklers de toda a Inglaterra. Chegavam a fazer-se apostas se sairia de campo com uma perna partida ou se iria desgraçar a tíbia de um adversário qualquer. A maioria apostava firmemente que se houvesse um estraçalhar de  ossos, esses ossos não pertenceriam ao esqueleto do futuro 11.º Lord Kinnair.  Inevitavelmente, ganhou a alcunha de Hacking, que se poderia traduzir livremente para português como sarrafeiro. Já no Old Etonians, a equipa dos ex-alunos de Eton, num jogo de rivalidade absoluta contra os Old Harrovians, ex-alunos de Harrow, o capitão adversário, farto de levar pancada, virou-se para Arthur e barafustou: «Afinal viemos para aqui jogar futebol ou para andar à porrada?». A resposta surgiu de imediato: «Vamos lá para a porrada!». J.A.H. Catton, editor do Athletic News, veio a terreiro defender o amigo: «He was a leader, and above all things, a muscular type of Christian… As a player, in any position, he was an examplar of manly robust football». Magnífica expressão, «if I must say so», essa do exemplar musculoso de cristão.Atira-nos de imediato para as ‘Escrituras’ e faz de Kinnaird uma personagem quase bíblica, digna de um Golias. Logo ele, que se recusava a usar calções e entrava sempre em campo de calças compridas, certamente um cuidado especial para com as suas próprias canelas. Catton concluia: «He popularised the game by his activity as a footballer among every class!». Parece que não restam dúvidas em relação à matéria em causa. Resta saber se popularizou o futebol pelos golos que marcava ou se pelos adversários que dizimava. Só a metafísica poderá responder…