Será este o verdadeiro cheiro a múmia?

O livro Reading Egyptian Art, de Richard H. Wilkinson, oferece uma boa janela para o mundo complexo do Egipto Antigo. Mas o meu exemplar tem outra particularidade.

N uma circunstância normal chamar-lhes-íamos secções. Mas eu prefiro, com um misto de pomposidade e ironia, imaginar estes núcleos como bibliotecas dentro da biblioteca, mundos dentro de um mundo. Assim, poderia dizer que a minha biblioteca engloba várias outras bibliotecas mais pequenas: a ‘biblioteca russa’, a ‘biblioteca americana’, a ‘biblioteca africana’… sem esquecer, evidentemente, a ‘biblioteca portuguesa’. 

Hoje vou falar da ‘biblioteca egípcia’. Visitei aquele país do Norte de África há cerca de duas décadas e tencionava regressar no ano passado – um desejo, como tantos outros, adiado pela pandemia. A contrariedade teve uma vantagem: deu-me tempo para preparar melhor a visita.

Estabeleci assim um ambicioso plano de leituras que me permitirão, se não tornar-me um especialista, pelo menos usufruir ao máximo da estadia (caso se concretize, claro; se não se concretizar, pelo menos terei aprendido alguma coisa). Da vida quotidiana ao processo de embalsamamento, do Nilo às pirâmides, dos grandes Faraós à campanha de Napoleão em 1798, passando pela cidade do Cairo, o Vale dos Reis e os hieróglifos, reuni um simpático acervo de literatura – a tal ‘biblioteca egípcia’ – que, porventura, revela mais olhos que barriga.

Neste momento encontro-me a ler Reading Egyptian Art, de Richard H. Wilkinson. É um livro profundamente útil e original, pois mostra de forma muito convincente a estreita relação entre os desenhos dos hieróglifos e as representações na pintura e na escultura. «Toda a escrita hieroglífica egípcia é feita de imagens, e no entanto quase nunca se tem consciência de que muita da arte egípcia é por sua vez fortemente influenciada por, e em muitas ocasiões feita de, palavras hieroglíficas e signos escritos», explica Wilkinson. Mais: «Assim que o escriba tinha aprendido a desenhar toda a variedade de signos ideográficos com a destreza necessária tornava-se um artista ipso facto».

O livro de Wilkinson não se lê como um romance, nem sequer como um livro normal, é antes quase uma espécie de dicionário. Cada par de páginas é dedicado a um ideograma (com o texto na página da direita e ilustrações na da esquerda): o homem sentado, a cabeça, o coração, o olho wedjat (aquele característico olho egípcio pintado; o esquerdo simbolizava a lua, o direito o sol), o falcão, o papiro, o lótus ou o escaravelho, «conhecido pelo seu hábito de empurrar bolas de excrementos de animais que deposita em túneis subterrâneos como fonte de alimento para as suas larvas». O facto de empurrar essas bolas «sugeria simbolismo solar» e a saída dos jovens escaravelhos de debaixo da terra fez com que o animal ficasse associado à ressurreição.

Explicações como esta proporcionam uma excelente primeira abordagem ao universo complexo do Egipto Antigo, com os seus deuses, símbolos e conceitos tão distantes dos nossos.

Mas não posso terminar sem revelar outra particularidade do meu exemplar de Reading Egyptian Art: falo do cheiro intenso, antigo, um pouco áspero. Creio que um especialista em vinhos, com o seu olfato bem treinado, não teria dificuldade em detetar notas de charuto e de papiro envelhecido. Quanto a mim, talvez esteja sugestionado, mas este odor penetrante parece saído diretamente de um sarcófago. De início arranhava-me a garganta, entretanto habituei-me e já não me parece tão incomodativo. Mesmo assim, de vez em quando ponho-me a pensar que, se as múmias tiverem cheiro, não deve andar muito longe disto.

A arte da Viagem
Paul Theroux €14,40
Quetzal

Decano dos escritores-viajantes, Theroux reúne desta vez as palavras dos outros – algumas das melhores passagens que alguma vez foram escritas em viagem ou sobre viagens. Por exemplo, ele que se tornou célebre pelos seus livros de grandes viagens de comboio, tem um subcapítulo dedicado a ‘Viagens de comboio peculiares’ em que figuram excertos de Cocteau, Flaubert, Nabokov, García Márquez e, claro, Simenon. Mas os conhecimentos de Theroux sobre literatura e viagens são verdadeiramente enciclopédicos, quase tão inesgotáveis quanto os recantos do próprio globo. Um banquete requintado para leitores ávidos e um consolo para viajantes frustrados.

O livro da piedade e da morte
Pierre Loti €9,90 Trad. Diogo Paiva
Assírio & Alvim

Oficial da Marinha, membro da Academia Francesa, autor de culto que influenciou Proust e foi retratado por Le Douanier Rousseau, Loti ficou conhecido pelos seus relatos de viagens e histórias de paragens exóticas. Aqui deixa-nos porventura o seu livro mais pessoal, em que escreve, como o próprio assume, «sobre coisas e seres que me são sagrados».

O vício dos livros
Afonso Cruz €15,50
Companhia dos Livros

Aproximadamente uma trintena de textos despretensiosos à volta dos livros e da leitura, temperados por memórias pessoais, citações apropriadas e pequenas histórias de grandes escritores. «Qualquer bom leitor, quanto maior for a sua biblioteca, mais sente o peso esmagador do que leu e, principalmente, do que não leu». As sugestivas ilustraçóes (como a da capa) também são do autor.