Distração ou delação?

Do lado da oposição de direita (e até dos partidos à esquerda do PS) choveram as críticas. Carlos Moedas falou de uma situação «intolerável» e houve quem usasse a palavra «delação». Ou seja, denúncia. A CML estaria a ‘denunciar’ à Rússia nomes de opositores ao regime.

O envio à embaixada da Rússia e ao seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, dos nomes dos organizadores de uma manifestação de apoio a Alexei Navalny, preso naquele país, provocou dois tipos de reações.

O presidente da CML, Fernando Medina, percebendo a delicadeza do caso, apressou-se com ar nervoso a pedir desculpa pelo «erro». E uns dias depois, o primeiro-ministro António Costa classificou o episódio como «um ato administrativo», que como tal não envolve qualquer responsabilidade política.

Do lado da oposição de direita (e até dos partidos à esquerda do PS) choveram as críticas. Carlos Moedas falou de uma situação «intolerável» e houve quem usasse a palavra «delação». Ou seja, denúncia. A CML estaria a ‘denunciar’ à Rússia nomes de opositores ao regime.

Quem tem razão, no meio disto?

Pelo que se soube depois, o episódio não é virgem.

O mesmo já sucedeu em relação a outros países, designadamente à Venezuela, Cuba e Israel.

Ora, logo aqui há qualquer coisa que não soa bem.

Com exceção de Israel, que é uma democracia – embora tenha uns serviços secretos altamente sofisticados, dada a delicadeza da sua situação internacional –, os outros países são ditaduras comunistas.

E a Rússia não anda longe.

Tendo isto em conta, a tal ‘prática administrativa’ parece ter água no bico.

Destina-se aparentemente a indicar a regimes totalitários o nome de opositores.

E, neste sentido, o uso da palavra ‘delação’ é absolutamente correto.

A questão não é, portanto, esta mas outra: Fernando Medina teve ou não conhecimento prévio do facto?

Acredito que não tenha tido.

Ele disse que não tinha – e, salvo prova em contrário, há que acreditar nele.

Mas já é muito difícil que desconhecesse por completo a existência dessa prática.

Não só porque ela dura há vários anos mas também porque já houve editais da Câmara e emails trocados sobre o tema.

Se assim é, Medina devia ter sido mais transparente na declaração que fez.

Devia ter dito: esta prática existia, de facto, mas neste caso eu não tive nenhuma intervenção.

Porém, ao falar como se o assunto fosse para ele uma novidade completa, não contribuiu para confiarmos na sua sinceridade.

Quanto a António Costa, foi infelicíssimo na declaração que fez.

Ao reduzir o caso a um ‘ato administrativo’, fingiu não perceber a gravidade do problema.

É impossível que Costa não entenda a enormidade que representa fornecer o nome de opositores a países não democráticos.

É impossível que não tenha consciência dos riscos que estas pessoas correrão caso queiram voltar à Rússia. Ou das perseguições de que podem ser alvo os familiares que lá vivem.

Toda a gente sabe como Putin trata os seus opositores, que são perseguidos internamente e objeto de atentados no estrangeiro…

No meio disto, houve ainda duas intervenções hilariantes.

Uma do nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, um homem indiscutivelmente inteligente, que veio pedir às autoridades russas para apagarem os nomes que lhes foram enviados «por lapso». É óbvio que um pedido destes só poderia ter o efeito contrário: alertar a Rússia e levá-la a dar mais atenção ao assunto, guardando ciosamente os dados.

A outra intervenção hilariante foi do próprio embaixador russo em Portugal.

Disse que para a Rússia essas informações não têm importância nenhuma e que os dados já tinham sido apagados.

Ora, se fosse assim, para que serviria o acordo que existe há anos para lhe serem fornecidos os nomes de manifestantes em Portugal?

E alguém acredita que a polícia secreta de um regime como o russo não tem uma base de dados dos opositores mais ativos no estrangeiro? Essa informação não é importantíssima para os serviços secretos?

Seria importante para qualquer regime – e, por maioria de razão, para a Rússia de Putin, um ex-chefe do KGB.

Enfim, todo este episódio é lamentável – e quase inacreditável.

Confesso que, quando ouvi as primeiras notícias sobre o assunto, nem acreditei: a CML fornecer à Rússia os nomes de manifestantes anti-Putin? Cabia na cabeça de alguém? Mas afinal era verdade…

Não sou dos que pedem demissões por tudo e por nada.

Mas uma coisa é certa: este caso tem de ser cabalmente esclarecido, até para tranquilizar imigrantes que cá vivem e que a partir de agora não se sentirão seguros.

No que respeita a Medina, ou muito me engano ou a sua carreira política acabou aqui.

As ambições que teria caíram fragorosamente.

Esta é uma mancha muito difícil de apagar.

Os seus adversários externo – e internos… – irão usar este acontecimento em todas as circunstâncias.

Julgo que não está em causa a sua vitória nas próximas eleições na CML, até porque Moedas é muito apagado.

Mas este episódio pode ter cortado as asas a Fernando Medina para voos mais altos.