“Vai ser difícil controlar esta vaga”

Crescimento da covid-19 na grande Lisboa está quase com a mesma força de janeiro, em todas as faixas etárias. RT está acima de 1 desde 9 de maio e especialistas dizem que não é possível tirar festejos do Sporting da equação.

O aumento de infeções no concelho de Lisboa, que já alastrou a toda a periferia, começou devagar e de um patamar baixo, com uma incidência cumulativa de 67 casos por 100 mil habitantes. Era assim na primeira semana de maio, com pouco mais de 100 novos casos por dia em toda a região, tantos como os que têm sido diagnosticados diariamente só na capital. Sabe-se agora que, na altura, três freguesias do centro histórico (Arroios, Santa Maria Maior e Misericórdia) já estavam acima da linha dos 120 casos por 100 mil habitantes, informação que não foi tornada pública por não serem diferenciadas as análises por freguesia, embora em Lisboa possam ter tantos habitantes como concelhos mais pequenos que então ficavam em ‘alerta’ acima desta barreira.

Análises posteriores do Instituto Ricardo Jorge mostram também que na altura a variante delta (que investigadores britânicos já associaram a uma transmissibilidade 60% superior) já representava mais de 10% dos casos na região de Lisboa, enquanto a média a nível nacional era de 4%. E depois, a 11 de maio, vieram os festejos do Sporting, a chegada de turistas e uma sensação maior de alívio, que culminou nas últimas semanas com dois fins de semana prolongados em que muitos já viajaram, um efeito que só se verá na próxima semana.

O Governo desvalorizou nos dias que se seguiram aos festejos do Sporting o impacto das aglomerações, mas entre os especialistas que são ouvidos nos grupos de trabalho do Governo há quem acredite que não é possível tirar esse efeito na equação como ‘impulso’ da transmissão mais acelerada na capital, que agora leva a admitir que há uma quarta vaga já com repercussões no aumento dos internamentos. É para isso que apontam os dados epidemiológicos, admitem especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL.

São dois os indicadores que consubstanciam a hipótese, que dificilmente será ‘provada’ porque na maioria dos casos não se estabelece uma ligação epidemiológica. Por um lado, o RT, que calcula a velocidade de transmissão da infeção (acima de 1, tendenciamente cada infetado gera mais de uma infeção). Em Lisboa, está acima de 1 desde 9 de maio, segundo os dados disponibilizados pelo INSA, mas se a subida foi sendo gradual, a 17 de maio dá um salto de 0,08, atingido o valor mais elevado do último ano à exceção do período entre o Natal e Ano Novo, de 1,23, explica um dos peritos. Este indicador reflete infeções que ocorreram cerca de cinco dias antes, o que coincide com o tempo médio de incubação da doença e empurra temporalmente o fenómeno, que não se verificou nas outras regiões, embora o país tivesse avançado para a última etapa de desconfinamento praticamente todo à mesma velocidade.

Significa, grosso modo, que entre 11 e 12 de maio, cada 100 infeções em vez de darem lugar a 115 novos casos, como vinha acontecendo até aí, passaram a dar mais 123. Parece pouco, mas quando se sabe que nem todos os casos são diagnosticados, dá uma ideia da aceleração, que poderá também já ter sido potenciada pela nova variante, que já estava a ganhar terreno em Lisboa. De resto, o INSA só analisou dados até 11 de maio, pelo que não há nenhuma análise disponível sobre o peso da variante delta na segunda metade do mês passado e esperam-se agora os dados de junho.

Duas semanas depois da festa leonina, já não eram três as freguesias da capital acima do patamar dos 120 casos por 100 mil habitantes mas mais de sete, e a subida mais intensa de casos começava a dispersar do centro para a periferia, onde agora o Governo admite que a transmissão já alastrou e que as restrições que se colocam à área metropolitana, mais que reduzi-la, visam tentar conter ao resto do país, onde nos últimos dias acelerou também a subida de casos, nomeadamente no Algarve e no Norte. Portugal voltou a registar mais de 6000 infeções nos últimos sete dias, quando chegou a baixar aos 2500 casos semanais.

 

Só 34 casos formalmente ligados aos festejos

Ao Nascer do SOL, a Direção Geral da Saúde adianta que, por via dos inquéritos epidemiológicos, foram formalmente ligados aos festejos do Sporting 34 casos, sem destrinçar se este número diz respeito a casos índice (pessoas que se terão contagiado nos festejos) ou se inclui contactos que possam ter ficado infetados.

A DGS considera natural que possam existir mais casos em que não tenha sido possível verificar a associação ao evento, mas salienta que o crescimento a que se assiste em Lisboa é multifatorial, «enquanto consequência natural do desconfinamento, que tem sido faseado, de eventos de outra natureza (familiares como casamentos ) e da emergência de novas variantes de preocupação mais transmissíveis (como a variante delta)».

Se, no caso da delta, a estimativa noticiada em primeira mão pelo i é de que já é dominante em Lisboa, o que a DGS e o INSA ainda não confirmaram, em matéria de desconfinamento, o país avançou quase todo à mesma velocidade. É por isso que os especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL, concordando que existem diferentes fatores, concluem que não dilui o que parece ter sido um fenómeno que coincide com os festejos do Sporting.

Carlos Antunes, que faz a monitorização da epidemia com Manuel Carmo Gomes na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, apresenta um segundo indicador: a incidência por faixa etária, que em Lisboa dá um salto por volta de 17 de maio (ver em baixo), cinco/seis dias após os festejos do Sporting e entre os jovens, sem que nada tenha mudado nas escolas. «Já havia uma tendência de subida mas o que pensamos é que houve um conjunto de fatores que a impulsionaram em Lisboa e a partir criaram cadeias de transmissão. Nas curvas das faixas etárias na região de Lisboa, o que vemos é que as pessoas das idades que estiveram nos festejos do Sporting, entre os 20 e os 40 anos, têm um aumento de casos logo cinco a sete dias depois dos festejos. Quinze dias depois, as faixas dos 50/59 e 60/69, que são os pais. A infeção foi contraída fora e propagou-se à família. Esta é uma interpretação. Claro que depois dos festejos do Spoting observam-se mais concentrações na rua, o regresso de eventos como casamentos e batizados, jantares privados», admite. «É um efeito cascata. O primeiro impulsionador é o desconfinamento total a 1 de maio, com o alargamento essencialmente da restauração mas que é igual para o país todo. Se esse fosse o principal motor, teria de se verificar no país todo. Depois em Lisboa há o impulso pelos festejos do Sporting, há maior mobilidade internacional, sabemos que temos uma dinâmica própria da zona urbana com mais movimentos pendulares. Estando cadeias de transmissão formadas, vão-se multiplicar com todos esses fatores».

 

Mais de mil inquéritos atrasados

Para os especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL ao longo da semana, deveria ter havido um reforço mais precoce da testagem e, à medida que os casos aumentaram, das equipas de rastreio. E se na semana passada já era possível perceber no relatório das linhas vermelhas divulgado pela DGS que estava a haver mais casos a serem isolados e rastreados pelas equipas de saúde pública fora do prazo de 24 horas, no novo documento publicado esta sexta-feira a degradação é notória: nos últimos sete dias avaliados, já só tiveram seguimento em menos de 24 horas 83% dos novos casos de infeção (na semana anterior eram 89%). O problema é que têm sido diagnosticados mais casos a cada semana, pelo que estas percentagens camuflam um aumento de inquéritos analisados fora do prazo que é maior quando se faz a conta a números absolutos, o que não surge no documento. Cruzando casos com indicadores, subiu-se de 485 inquéritos com atraso para 1054 entre 10 e 16 de junho – o dobro de uma semana para a outra, calculou o Nascer do SOL.

 

Vaga ao ritmo de janeiro

Carlos Antunes adianta que, com uma nova aceleração dos últimos dias, que alguns especialistas já estão a ligar ao efeito dos fins de semana prolongados de junho, neste momento na região de Lisboa verifica-se um aumento da incidência em todas as faixas etárias e a um ritmo diário agora quase idêntico ao que se verificou na fase mais acelerada da epidemia em janeiro, com subidas diárias na incidência por 100 mil habitantes entre os 5% e os 7% consoante a faixa etária. «A diferença é que a região de Lisboa partiu agora de uma incidência de base muito mais baixa. Em janeiro partiu de 1100 casos diários e agora parte de 110 casos diários», explica, admitindo que, em termos de força, Lisboa aproxima-se do que se vivia em janeiro na transmissão do vírus.

Há a expectativa de que a vacinação reduza a necessidade de internamentos, e é o que tem acontecido, mas no caso da região de Lisboa chegar-se à linha vermelha definida para a ocupação de cuidados intensivos com doentes covid-19 parece agora inevitável e a maioria são agora pessoas entre os 50 e os 59 anos. A nível nacional, foi estabelecida como linha vermelha haver 245 doentes com covid-19 em UCI, o limite a partir do qual é preciso começar a fazer ginástica com outras equipas para abrir mais camas e em que se pode penalizar a resposta a outros doentes menos urgentes, o que agora vem acalhar numa altura de períodos de férias em que a atividade no SNS já é habitualmente menor. Em Lisboa, a linha vermelha são 85 camas de UCI e Carlos Antunes revela ao Nascer do SOL que a previsão é que, ao ritmo atual, se chegue a esse ponto «em sete dias». Esta semana, a ministra da Saúde colocou os hospitais de prevenção, havendo ainda folga em todo o país, mas há também milhares de consultas e cirurgias para recuperar.

Para Carlos Antunes, repetiram-se erros de outras vagas, nomeadamente não se tendo reforçado a testagem mais cedo. Quanto ao efeito das medidas agora anunciadas, acredita que pode haver um abrandamento de contactos, mas a dinâmica é forte e deverá demorar a ser controlada.

No caso do concelho de Lisboa, é praticamente certo um recuo nos horários de fecho ao fim de semana e será difícil a capital voltar a estar abaixo dos 240 casos por 100 mil habitantes antes de julho, explica o investigador, pelo que não será algo de uma semana ou duas. Lisboa passou já os 300 casos por 100 mil habitantes e deverá chegar aos 340/350 até ao fim de semana, explica, dado o potencial de infeção e um RT de 1,12 no concelho. Já os restantes concelhos da AML, mantendo-se a atual tendência, também devem passar a barreira dos 240 casos por 100 mil habitantes nos próximos dias. Uma situação que já levou o Governo a admitir adiar a próxima etapa de desconfinamento, que alargaria lotações e público nos estádios, mas pode forçar mais medidas em Lisboa, o que o Governo não descarta.

O Nascer do SOL procurou perceber qual foi o parecer dos peritos da DGS e do INSA sobre esta situação, mas não houve resposta. Para a equipa da FCUL, as restrições de circulação de restrição de e para fora da AML podem levar a uma maior perceção de risco e, nessa medida, diminuir contactos e abrandar a transmissão, mas não têm um ‘efeito direto’ e, dada esta dinâmica, a diminuição de infeções, quando se iniciar, será lenta, antecipa Carlos Antunes.  «Será difícil controlar esta vaga antes de agosto. Vamos ter uma onda de grande comprimento como a que se iniciou no final de agosto, foi acelerada com a abertura das escolas e depois só terminou em meados de novembro. Como não há uma ação direta de confinamento, a resposta é mais lenta», diz, explicando de uma forma simples o papel que a variante delta, que deverá tornar-se dominante em todo o país, pode ter nesta equação – e nas perspetivas para um verão que, pelo menos em viagens internacionais, parece agora mais tremido. «A variante delta é 60% mais transmissível que a alpha (inglesa). Nessa base, neste momento estamos a calcular que a taxa de infeção da variante alpha era de 7,5% e a da variante delta é de 12,5%. O que quer isto  dizer: há um infetado, tem um período de geração de infeção, o período em que está contagioso e ainda não foi isolado, isto em média. Se forem quatro dias e tiver contacto diário com 12 pessoas diferentes, ao fim de quatro dias foram 48 contactos. A taxa de infeção é a percentagem de contactos que poderão ser infetados. Se destes 48 estiverem 20% vacinados, esses já serão menos suscetíveis. Agora, o que uma variante mais transmissível significa é que um infetado pode infetar mais pessoas». Armas?_«A vacinação serve para as pessoas serem menos suscetíveis. O confinamento foi o que usámos para suprimir contactos, é a medida mais eficaz, mas sabemos que a taxa de infeção também pode ser reduzida com o uso de máscara e distanciamento, reforçando as medidas de proteção individuais».