Alemanha. Esse miserável vício de estender o braço

Hitler conservou-se no poder de 1933 a 1945. Durante esse período, a seleção da Alemanha fez exatamente 100 jogos (dois dos quais contra Portugal), e o Schalke tornou-se o clube favorito da elite nazi, o seu capitão, e capitão da equipa nacional, era um escroque chamado Fritz Szepan, e os ingleses entraram no circo.

por Afonso de Melo, em Munique

MUNIQUE – Objetivamente, Adolf Hitler estava-se nas tintas para o futebol. Pessoalmente era de opinião que os alemães deviam dedicar-se mais à ginástica e ao atletismo do que perderem tempo a imitar ingleses. O problema é que o futebol atingira tamanha popularidade por toda a Europa que a Alemanha não escapava ao fenómeno. Repare-se, por exemplo, que a final da Taça da Alemanha de 1942 disputada entre o Schalke 04 e o 1860 Munique, contou com 80 mil espetadores pagantes. E se o pagantes aqui não cai do céu – a receita de bilheteira era a única forma de sustento dos clubes alemães – os  tais oitenta mil ecoavam com facilidade nos ouvidos de Adolf._Não se dava ao luxo, nunca, de não tentar concentrar na sua pessoa todo o apoio popular que pudesse. Adorava ser adorado. E se para isso tinha de suportar o futebol, muito bem, ele suportá-lo-ia. Mas à sua maneira, como sempre.

O clube preferido da elite nazi era o Schalke. Não por acaso. Há muitos episódios da História que aconteceram por acaso, mas poucos assuntos na Alemanha nazi eram deixados ao acaso. O Schalke era o clube dos mineiros do Vale do Rühr e os interesses económicos rodeavam essa atividade de forma visível. De tal forma que, enquanto Hitler esteve no poder, o Schalke foi seis vezes campeão da Gauliga, um sistema competitivo posto em vigor que começava, na base, por eliminatórias regionais e terminava com o confronto entre os campeões de todas as províncias da Alemanha. Mas não se entenda por aí que, a despeito de ser um clube rico, ou melhor, suportado por muitas das grandes fortunas que foram construídas à custa da exploração mineira, pagasse ao seus jogadores. Isso estava completamente fora de causa. Até os prémios eram proibidos. Os jogadores batiam-se por si próprios e pela sua sobrevivência. O futebol não lhes dava nem um marco, mas trazia-lhes reconhecimento público e algum estatuto nas reduzidas comunidades de onde vinham.

O capitão do Schalke chamava-se Friedrich Szepan. Ou simplesmente Fritz. Um tipo pouco recomendável, natural de Gelsenkirshen, a cidade do Schalke, onde nasceu no dia 2 de setembro de 1907. As suas qualidades ficavam fechadas dentro das quatro linhas:_apesar de não ser um jogador muito rápido, tinha habilidade e uma capacidade de antecipar os movimentos adversários que lhe permitiam jogar tanto no comando da defesa como mais adiantado, no meio-campo. Membro do Partido Nacional-Socialista foi nomeado capitão da seleção da Alemanha Unificada logo após o Anchluss, ou a anexação austríaca. Publicamente admirador de Hitler, era um esbirro – denunciava às autoridades todos os seus colegas de profissão que fossem judeus. Isso não evitou que lhe caísse em cima a suspeita de ser filho de filhos de emigrantes judeus polacos. O clube saiu em sua defesa, vituperando a notícia e pondo as mãos no fogo pelo seu puro sangue ariano. Se algo os nazis faziam bem era proteger os seus bufos.

 

A vergonha da Inglaterra!

Peter Kenny Jones é um dos grandes historiadores do futebol durante o período nazi e vale a pena ler com atenção algumas das suas teses. Uma delas começa assim: «In truth, Hitler didn’t like football. It wasn’t part of his grand plan to create an Aryan race and dominate Europe and he had little time for it. However, there was one match that he did watch, which was during the 1936 Olympic games». Erguidos como a maior exibição de propaganda jamais levada a cabo na Europa para glorificação de um homem e da sua política, os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 ficaram para a História como Os Jogos de Hitler.

Jesse Owens, um fulano negro, natural do Alabama, deu uma grande machadada na tal supremacia ariana ao ganhar quatro medalhas de ouro – 100 metros; 200 metros; estafeta 4 por 100 e salto em comprimento. Se esta desfeita foi difícil de engolir, outra do género teve lugar no dia 7 de agosto. Depois de afastar os luxemburgueses por 9-0 na primeira ronda do torneio de futebol, cabia à Alemanha defrontar a Noruega nos quartos-de-final. Hitler fez a sua entrada pomposa no Estádio Olímpico seguido pelos seus mais altos dignitários – Joseph Goebbels, Hermann Göring e Rudolf Hess. Mais de 55 mil espetadores juntaram-se nas bancadas para assistirem alegremente à devastação dos noruegueses, mas o facto é que estes ganharam por 2-0, a sua vitória correu mundo, e Adolf saiu envergonhado, antes ainda de o jogo acabar, prometendo a si próprio que não voltaria a por os pés numa partida de futebol. Para que o desastre não fosse completo, a equipa da Itália, dos seus amigos fascistas comandados por Mussolini, tornou-se campeã olímpica nesse ano.

De todos os jogos levados a cabo pela Alemanha nazi, houve um que se destacou acima de todos: a receção à Inglaterra no dia 14 de maio de 1938, numa altura em que já ninguém tinha grandes dúvidas que a guerra iria tomar conta da Europa a despeito dos esforços ingénuos do Primeiro-Ministro britânico Nevil Chamberlain. Para os ingleses, foi a vitória mais vergonhosa da sua história. Antes da proclamação de Chamberlain, após a cimeira de Munique, de que tinha obtido Peace in Our Time, as altas esferas nazis entraram em contacto com o governo do Reino Unido de forma a que a seleção inglesa jogasse um encontro particular no Estádio Olímpico de Berlim. O recinto abarrotou: mais de 110 mil espetadores. Vencer a Inglaterra era um sonho para os nazis e serviria para colocar as coisas nos seus devidos lugares quanto à superioridade desportiva dos arianos. Mais uma vez ela foi desmentida. A Inglaterra venceu confortavelmente por 6-3, mas Hitler sentiu-se triunfante. Dois meses depois de ter anexado a Áustria, a maior representação desportiva da democrática Inglaterra, a sua seleção de futebol, perfilou-se no meio do terreno e todos os jogadores esticaram o braço direito na miserável saudação nazi. Por esse motivo, ainda hoje os ingleses parecem querer esquecer essa vitória. A ordem para que a saudação fosse feita chegou diretamente do Foreign Office e a discussão sobre a cumplicidade dos jogadores no acto continua a ser controversa e discutida. Uma reportagem levada a cabo pelo jornal The Observer entre testemunhas sobreviventes dessa altura acabou por revelar que a equipa estava dividida entre alguns que se estavam a marimbar para o gesto e outros que queriam tanto recursar-se a fazê-lo que quase provocaram um motim.

Portugal jogou por duas vezes contra a Alemanha de Hitler, em 1936, no dia 27 de fevereiro, em Lisboa, perdendo por 1-3, e em 1938, no dia 24 de abril, em Frankfurt, empatando 1-1. Mas, nesse caso, o assunto da saudação não se colocava. O regime nascido da revolução de 28 de Maio de 1926 adotara a saudação do braço estendido como sua.

Três anos antes da infeliz imagem da submissão inglesa em Berlim, já as duas seleções se tinham defrontado em Londres, em White Heart Lane, estádio do Tottenham, e a opinião pública erguera indignada a sua voz contra aquilo que considerou uma vergonhosa ação de propaganda nazi levada a cabo em território britânico com a permissão leviana do governo ou mesmo com a sua colaboração. A verdade é que, apesar de mais uma vitória da Inglaterra, por 3-0, num jogo tão, tão amigável que quase não precisou de árbitro, Adolf Hitler voltava a ganhar no campo que lhe dizia respeito: o da popularidade. Como sempre, não deixou nada ao acaso. Cerca de 8000 adeptos alemães atravessaram a Mancha e desembarcaram em Dover de onde comboios especiais os transportaram para Londres acenando alegremente as suas bandeirinhas vermelhas e negras com a cruz suástica. Durante o jogo, a sua presença foi indisfarçável e incomodou, deveras, muitos ingleses que se sentiram usados. Adolf não devia conseguir esconder um sorriso por debaixo daquele bigodinho ridículo.

 

Há sempre alguém que diz não!

Se Fritz Szepan, o canalha, mereceu umas linhas aí mais atrás, há outro jogador que as merece bem mais do que ele: Stan Cullis. Nascido em Ellesmere Port, no dia 25 de outubro de 1916, muito cedo começou a destacar-se pela sua qualidade como defesa central e fez uma carreira impecável pelo Wolverhampton. A 23 de outubro de 1937 fez a sua estreia com a camisola da Inglaterra num amigável frente à Irlanda que registou uma goleada inglesa por 5-1. No dia 14 de maio de 1938, Cullis estava em Berlim. Quando foi alertado, no balneário, antes de subir ao relvado, de que seria obrigado a fazer a saudação nazi, disse simplesmente NÃO! Recusou-se a jogar. Não houve outra solução se não tirá-lo da equipa titular e fingir uma lesão conveniente. O tempo demorou a elevá-lo ao estatuto que a sua coragem mereceu, mas é nos dias de hoje um exemplo de patriotismo para todos aqueles que conhecem a sua história.

A atitude de Cullis provocaria outras idênticas. No Verão desse ano, a equipa do Aston Villa foi convidada para mais uma fantochada nazi e jogou, em Berlim, contra uma seleção alemã de refugo, composta quase por inteiro por antigos internacionais austríacos. Mais uma vitória inglesa: 3-1 perante mais de 100 mil espetadores. As autoridades britânicas voltaram a aconselhar os jogadores a cumprirem a saudação nazi como forma de reforçar os laços de paz existente entre ambas as nações. Todos os jogadores recusaram-se a fazê-lo. O público, furibundo, presenteou-os com assobios e insultos. Mas mais alguém dissera não à prepotência de Adolf e seus sequazes.

O circo!

Tristemente, outras equipas inglesas continuaram a alimentar o circo com que Hitler entretinha a sua populaça sedenta de futebol a sério. Tudo o que viesse de Inglaterra, vinha embrulhado num pacote de seriedade e profissionalismo que encantava os adeptos alemães. Os visitantes que se seguiam pertenciam ao Derby County. Também eles foram aconselhados a fazer a saudação fascista para que a política de bem-estar se mantivesse. A direção do clube tentou a via democrática e entregou aos seus jogadores a decisão de estenderem, ou não, a mão na altura de se perfilarem perante o público que, mais uma vez, se apresentou às dezenas de milhar. O grupo aceitou levantar a mão direita para agradar ao poder, mas o guarda-redes Jack Kirby manteve-se orgulhosamente em sentido, com os braços ao longo do corpo, demonstrando dessa forma o seu repúdio pelo regime de Adolf, um episódio que faz recordar o que sucedeu no dia 30 de janeiro de 1938, na receção de Portugal à Espanha – no momento de cumprimentarem o público com a saudação fascista, Azevedo esticou o braço mas manteve os dedos encolhidos, Quaresma limitou-se a ficar em sentido e José Simões, também do Belenenses, e Mariano Amaro levantaram os punhos. Os jornais dos dias seguintes procuraram não tocar no assunto, a revista Stadium chegou mesmo a retocar a fotografia das equipas alinhadas de forma a que nada se notasse. Mas nenhum deles escapou às incómodas perguntas da PVDE, tendo José Simões e Mariano Amaro sido mesmo presos para interrogatório.

O infame gesto fascista criava problemas atrás de problemas e Hitler parecia divertir-se à brava com isso. Vendo bem, estava convencido que dentro em pouco, toda a Europa estaria de braço esticado gritando:_«Heil Hitler!». Na fase final do Mundial de 1938, a Alemanha nazi tomou o lugar da Áustria. Afinal, eram um só país após o Anschluss. Sabendo da melhor qualidade dos jogadores austríacos, recuperados do Wunderteam, a seleção recaiu maioritariamente sobre eles, Mathias Sindelaar, o Homem de Papel, teria o papel de conduzir a Alemanha à glória. Mais uma vez, o comportamento da equipa nazi foi grotesco, eliminada logo na primeira ronda por 2-4 (depois de estar a vencer por 2-0), num jogo de desempate que se seguiu ao inicial 1-1. Em Paris, os franceses festejaram alegremente o afastamento dos nazis. Algo que fez com que a mostarda subisse ao nariz de Adolf. Foi criada de imediata uma comissão para encontrar os culpados pela derrocada. Como seria de esperar, as culpas caíram sobre os jogadores austríacos, considerados velhos e, sobretudo, incapazes de encarnar a força vitoriosa e conquistadora da raça alemã. A maior parte deles caiu em desgraça, principalmente Mathias Sindelaar, nesse tempo tido como um dos grandes jogadores do mundo. A vida de Sindelaar foi vasculhada de cima a baixo pelos esbirros de Hitler, passou a ser seguido a todas as horas por membros da polícia política e não tardou a aparecer morto no seu apartamento, abrindo suspeitas onde todos tinham certezas: fora abatido pelo regime de Hitler. Adolf podia não gostar de futebol e suportá-lo por uma questão de sossego. Mas não admitia fracassos em momentos nos quais exigia triunfos. O Homem de Papel pagou pela incompetência de uma política desportiva. Aos 35 anos. Seis meses após o Mundial…