Cabo Delgado. Imprensa amordaçada

Um jornalista no norte de Cabo Delgado sem autorização ‘é alvo do Estado e dos insurgentes’, num país onde quem é crítico é pouco ‘patriota’. 

Ser jornalista em Portugal é fácil, quando comparado com Moçambique. Sobretudo desde que estalou a guerra no norte, em Cabo Delgado, que Maputo quer abafar a todo o custo – seja para não prejudicar a sua imagem internacional, para esconder os abusos das suas tropas ou as suas opacas negociatas com mercenários. Não há jornalista moçambicano crítico com quem o Nascer do SOL fale que não se queixe de ameaças recorrentes, de receber recados para abandonar notícias, de colegas desaparecidos ou presos, de campanhas linchamento nas redes sociais, sob pretexto de não serem «patriotas» o suficiente.

«Patriotas», leia-se, ‘fãs do Governo’. «É uma terminologia que aqui em Moçambique é usada para silenciar a imprensa crítica», queixa-se Armando Nhantumbo, repórter da Savana. «O resultado disso é quererem um jornalismo patriótico, sem apontar os erros».

E o que não faltam são erros a apontar, sobretudo na gestão do esforço de guerra em Cabo Delgado, acusa Marcelo Mosse, diretor da Carta de Moçambique. Momentos antes de falar com o Nascer do SOL, editava um texto de um dos seus repórteres, relatando como militares, a pretexto de caçar jiadistas, abriram fogo indiscriminado numa povoação nos arredores de Palma – o Governo diz que já recuperou a vila, que está tudo sob controlo, mas os relatos de ataques multiplicam-se – e puseram a população em fuga para o mato, na quinta-feira, confiscando os seus bens. 

«É uma tropa sem condições, mergulhada em corrupção, sobretudo entre chefias militares e policiais»,afirma o diretor da Carta de Moçambique. «A guerra só chegou onde chegou por causa disso. Houve gente que lucrou com a guerra». 
Contudo, em boa parte da imprensa moçambicana, dificilmente lerá algo sobre o assunto. Por um lado, «a autocensura é gritante, há muita gente que não escreve por receio», diz Mosse. Por outro, «desde que a guerra começou, há mais de três anos, existe um pacto, uma espécie de ordem de silêncio na imprensa pública  sobre Cabo Delgado», acrescenta Nhantumbo.

«Na imprensa pública moçambicana não vais encontrar nenhuma referência ao que está a acontecer, só declarações do Presidente da República, dos ministros e oficiais, a dizer que há avanços», continua o repórter. «Mas o que parece é que, de avanço em avanço, caminhamos para a derrota final», lamenta. «As mensagens do Governo são contrariadas todos os dias pelos ataques, pelo número crescente de deslocados».

Um cadáver ao sol
Nhantumbo conhece bem tanto o medo de represálias por fazer o seu trabalho, como a província de Cabo Delgado – chegou a ser premiado pela UE, por uma reportagem de 2017, quando começou a guerra, revelando que a Montepuez Minning Lda, então propriedade de uma empresa britânica e de um todo-poderoso general da Frelimo, tinham queimado casas e brutalizado populações, para avançar com prospeções de rubis.

Desde então, mal conseguiu regressar a Cabo Delgado, sobretudo ao norte da província, selada ao resto do mundo. Tanto pelos crescentes ataques de jiadistas, como pela proibição de entrada de jornalistas pelo Governo.

«Para chegar aos distritos lá para cima, só é possível com boleia das próprias Forças de Defesa e Segurança, quando o Governo acha que tem de mobilizar jornalistas para uma situação pontual», conta Nhantumbo. Foi assim que chegou a Palma, umas semanas depois do ataque que devastou a vila, no final de março, vitimando habitantes locais e trabalhadores estrangeiros das prospeções de gás da petrolífera Total, ali ao lado. Maputo, que prometera manter Palma segura, tinha o orgulho ferido, cria que já estava tudo tranquilo e os insurgentes em fuga. O cenário parecia encenado. 

«É engraçado que havia pessoas que conhecíamos, ligadas ao Serviço de Informações e Segurança do Estado, que estavam muito interessados em ouvir as perguntas que a imprensa privada colocava às populações», conta Nhantumbo. «Os jornalistas dos orgãos públicos não tinham sipaios nas suas costas, mas nós sim».

«Havia pouca margem de manobra», recorda o jornalista, que tinha como objetivo chegar ao Hotel Amarula, onde se refugiaram funcionários da Total, na altura do ataque, antes de serem evacuados, com apoio aéreo dos mercenários do Dyck Advisory Group (DAG). Antes disso, mais de uma dezena acabaram massacrados, e Nhantumbo queria tentar perceber junto dos habitantes locais o que aconteceu – mas, por coincidência, o autocarro providenciado pelo Governo não conseguia chegar à zona montanhosa onde fica situado o hotel. 

«Ficámos sem alternativa, limitados a circular pela vila. Mas claro que não por toda a vila, só podíamos ir onde a comitiva nos conduzia». Contudo,  Nhamtumbo, junto com um colega do Canal de Moçambique, ainda conseguiu fugir à vigilância, guiado por um habitante local.

A uns 500 metros do percurso autorizado, para mostrar como os militares tinham tudo sob controlo, que a vila já voltara ao normal. depararam-se com o cadáver de uma idosa, estendido no meio de uma rua, a decompor-se ao sol. «É um de vários corpos, que semanas depois continua aqui», contou-lhes o seu guia. «Claro que isso não fazia parte do roteiro»  

Um país às cegas
Torna-se quase impossível perceber o que de facto se passa no norte de Cabo Delgado. «Se vais lá sem sanção do Estado, és alvo do Estado e dos insurgentes. Porque o Estado também reprime», nota Marcelo Mosse. Neste momento, praticamente todas as notícias que lê sobre a província são escritas com base em comunicados oficiais – invariavelmente anunciando o abate de jiadistas ou que alguma localidade foi retomada – ou relatos das quase 800 mil pessoas que fugiram para sul.

A questão é que não é apenas o público a não estar adequadamente informado, é que isso pode influenciar o próprio decorrer da guerra, deixando  as autoridades com uma sensação de falta de escrutínio e impunidade. Tanto no que toca à corrupção e aos abusos de direitos humanos nas forças armadas – o que muitos analistas veem como contributo para o recrutamento dos jiadistas – como às próprias decisões de Maputo.

Aliás, dirigentes da Renamo, o maior partido da oposição, têm apelado ao Governo que aceite ajuda militar internacional, acusando o Executivo de se mostrar reticente por isso implicar escrutínio à corrupção incluindo dentro das Forças de Defesa e Segurança. E que por isso é que Maputo preferiu optar pelos mercenários russos da Wagner – que entretanto já retiraram, após sofrerem pesadas baixas na selva – ou sul-africanos da DAG, para os quais, desde que o dinheiro que lhes pagam esteja certo, está tudo bem.