Se eu mandasse

Reina o ditado “faz o que eu digo, não faças o que eu faço” e a incoerência é crescente. Cresce na mesma proporção da desconfiança, da descrença, do desacreditar no rumo de quem nos governa. O desnorte é o que mais assusta e só existe por falta de comunicação.  E quando não falta, é má.

Por Sofia Aureliano

Quando se dá opinião, ainda que intencionalmente seja construtiva, sobre algum tema que marque a ordem do dia ou domine as conversas de café, há sempre alguém que se sente melindrado ou aborrecido, enfia a carapuça e arremessa a pergunta: e tu, se lá estivesses, o que fazias diferente?

Primeiro, fico feliz que mo perguntem porque o meu objetivo não é falar sobre Marte. É abanar ninhos de vespas, pôr álcool na ferida e fazer-nos questionar, juntos, as verdades que temos por absolutas. Que, para mim, são cada dia mais diminutas.

Esta também é uma questão que me inquieta. “Se eu mandasse, como seriam as coisas?” Começo por reconhecer que não é fácil decidir. Para além de distúrbios na barriga, pode custar muitas noites de bom sono. Dito isto, é um privilégio de que se deve ter noção todos os dias. E honrá-lo com o melhor de si mesmo.

Mas indo à vaca fria.

1. Confinar ou Desconfinar? Não sou epidemiologista, infeciologista, nem especialista em saúde pública mas, curiosamente, acredito que a minha especialidade é uma das que poderia dar um importante contributo nesta fase do combate à pandemia: a comunicação.

Já percebemos que as pessoas estão cansadas de  regras e cada vez mais resistentes ao cumprimento das mesmas. Já é claro que, pela imposição da força, não existe capacidade de resposta (nem seria recomendável se existisse). Já é dos clássicos que quando as palavras não correspondem às ações, é a credibilidade do decisor que cai por terra. Sabemos que nos mandam confinar, ao mesmo tempo que permitem a realização de eventos. Sabemos que nos multam por não usar máscara se andarmos sozinhos, mas num coletivo, está tudo bem.

Sabemos que, nos concelhos da área metropolitana de Lisboa, voltámos a estar limitados às seis pessoas numa esplanada, e apenas ao almoço, no fim-de-semana. Mas também sabemos que há quem não deixe de ativar o chico-espertismo, quebrar uma regra aqui e ali, e dar um jeitinho para ir comer um bacalhau ao Fuso, na Arruda dos Vinhos, ou uma sopa da pedra a Benavente. Porque aí estamos safos. Parece que o vírus não anda por esses concelhos.

Reina o ditado “faz o que eu digo, não faças o que eu faço” e a incoerência é crescente. Cresce na mesma proporção da desconfiança, da descrença, do desacreditar no rumo de quem nos governa. O desnorte é o que mais assusta e só existe por falta de comunicação. E quando não falta, é má.

O que é que eu faria se mandasse? COMUNICAVA. Informava transparentemente os cidadãos sobre todas as motivações das decisões do governo. Todos os números. Toda a conjuntura. Mesmo que isso significasse assumir deficiências de organismos públicos, falhas de organização, incapacidades de dar resposta, falta de controlo. Se os cidadãos estiverem informados  do que realmente se passa, farão parte da decisão e contribuirão para que o resultado final desejado seja atingido.

Se eu assumir perante os portugueses que não tenho como controlar se eles se deslocam ou não de uma região para outra, mas se lhes apresentar os riscos reais da sua potencial deslocação e de que forma a sua ação pode ter impacto para a saúde pública nacional, estarei a gerar aliados e não a alimentar inimigos ou contrafatores. Medida a medida. O que os portugueses não suportam é ignorar, não compreender e, por isso, perante as aparentes incoerências, sentirem-se enganados.

2. Mea Culpa e Orgulho. Não subscrevendo integralmente a visão de Thomas Jefferson, para quem um homem que assume uma função pública deve ser considerado propriedade do público, acredito que existe uma responsabilidade inerente à assunção de funções públicas, de pastas ministeriais e sobretudo, de se sentar na cadeira de primeiro-ministro. Em última análise, há sempre um responsável máximo por tudo o que acontece, aquele que deve honrar a  posição para a qual foi eleito, assumindo as responsabilidades que lhe são devidas. Todas.

Não temos por hábito ver este governo assumir erros, problemas, desvios de caminhos, readaptações necessárias. Temos por hábito ver este governo reagir a críticas, negando-as ou apontando o dedo a entidades, instituições, intermediários, organismos, aos cidadãos, ou empurrando entre tutelas, como uma bomba em contra-relógio. Mas nunca ouvimos o mea culpa de quem o deve fazer. Por princípio, por inerência de funções, é o primeiro-ministro quem é o responsável último, a voz final. E só serão resolvidos os problemas se forem identificados e se se assumir que eles existem.

O que é que eu faria se mandasse? O governo falava a UMA SÓ VOZ e ASSUMIA publicamente os ERROS. Pedia ajuda aos especialistas a reorientar o rumo, corrigia as ações falhadas, recorria aos exemplos internacionais e à informação existente. Que, hoje, é muita.

Existe uma pandemia global e cada Estado-Membro tem a sua estratégia de combate. Há exemplos que resultarão melhor do que outros e nem todos servirão a Portugal. Mas com tantos modelos, não é necessário inventar a roda.

Existem partidos com assento parlamentar que têm dado vários contributos construtivos para reagir à pandemia, identificando os setores mais fragilizados, as falhas mais críticas, os problemas mais  denunciados pelos cidadãos. Têm apontado caminhos, aconselhado, até houve quem se abstivesse de fazer oposição por um superior interesse nacional, quando poderia utilizar cada erro como arma contra o governo. Mas cada erro é, hoje, uma arma contra os cidadãos. E têm de se travar as munições. 

Mas o governo comete o erro mais fatal, que já Churchill identificava: “o orgulhoso prefere perder-se a perguntar qual é o seu caminho.”

O orgulho não pode custar a vida aos portugueses. E, hoje, o custo vai mais além do que ser infetado pelo vírus Sars-Cov2. É o custo de não ter liberdade para usufruir de uma vida normal, exercer em pleno os seus direitos, voltar a estar com quem se gosta. É, muitas vezes, o custo de ter um emprego estável, voltar a ter rendimentos e viver com condições dignas para dar sustento ao seu agregado familiar, ter acesso à saúde, à habitação, à educação, poder reabrir o seu negócio, poder pagar aos seus trabalhadores, poder voltar a exercer a sua atividade artística, cultural ou desportiva, ou consumi-la, ir a uma peça de teatro ou a um concerto. Poder viajar, poder circular dentro do seu próprio país, sem limitações. Entre tantas outras coisas que nos foram tiradas e que, com pesos e consequências muito diferentes, obviamente, têm um elevado custo na nossa vida. Nenhum de nós sairá igual desta pandemia.

Contudo, a perceção que tenho é que o governo passará por ela ileso. Igual a si mesmo. Com as mesmas estratégias propagandísticas, manobras e narrativas, a mesma ausência de solidariedade e de responsabilidade, o mesmo espírito de sobrevivência. Quando, com uma experiência destas, poderia ter crescido, melhorado, aperfeiçoado-se. Muito. Tornar-se humilde, mais próximo, mais eficiente, com espírito de missão.

Era isso que aconteceria a qualquer um de nós.

Em vez disso,  vemos manipulações, incoerências, enganos, nomeações, encobrimentos, falhas, mentiras, embustes, mal-entendidos e desacertos. 

Um dia isto terá um fim. Mas não será hoje.

Esta noite esquecemos o caos e somos felizes durante umas horas. Vai jogar Portugal.