Um barco à deriva…

O país anda anestesiado, de mão estendida, entre ‘bazucas’ e graçolas do primeiro-ministro, ansioso por ‘meter ao banco’ o cheque europeu

Entretidos com a espuma dos dias, por vezes não se valorizam certas revelações, que se evaporam num ápice no espaço mediático como areia fina por entre os dedos. A divulgação de um estudo recente, aponta para uma progressiva disponibilidade dos portugueses para aceitarem um regime autocrático. 

As conclusões deram título no Expresso – Só 37% rejeitam líder político autoritário –, uma tendência que tem vindo a acentuar-se desde 1990, quando Portugal passou a participar como parte do European Values Study, abrangendo 34 países. É, portanto, um retrato nacional pouco abonatório.

Note-se que, no primeiro estudo com perfil mais alargado, metade dos portugueses ainda excluía soluções ‘musculadas’ de regime. Algo que se foi esbatendo e hoje o país ocupa uma modesta posição na tabela, encimada pela pergunta se era ‘mau ou muito mau ter um líder forte que não se preocupa com parlamento ou eleições’. 
Somos dos que menos se incomodam com formas autoritárias de governo, apenas suplantados por alguns países do leste europeu, tendo a democracia como alcunha.

Paradoxalmente, para 86% dos inquiridos ‘ter um sistema político democrático’ é uma boa maneira ou mesmo muito boa de governar o país, o que ‘não bate a bota com a perdigota’, embora traduza, talvez, em abstrato, um certo modo de estar português, com uma noção mal-amanhada do que é a viver em liberdade. 

A contradição esbate-se quando se confirma uma progressiva apatia ou desinteresse pela política, testemunhada pela subida constante da abstenção eleitoral. 

Segundo a Pordata, a percentagem de abstencionistas nas legislativas que, em 1975, foi de 8,5%, nunca parou de aumentar, situando-se, em 2015, nos 44,1% e nas últimas, em 2019, nos 51,4%, um novo e sintomático recorde, refletindo o afastamento dos eleitores das urnas.

O país anda anestesiado, de mão estendida, entre ‘bazucas’ e graçolas do primeiro-ministro, ansioso por ‘meter ao banco’ o cheque europeu. E o poder dominante abusa. Num curto período, sobram os episódios. 
Repare-se, por exemplo, no comportamento de Fernando Medina, visto como o ‘delfim’ de António Costa. Confrontado com a polémica ‘cumplicidade’ do município com a embaixada russa, no caso da manifestação de ativistas anti-Putin, o autarca mandou exonerar o encarregado da proteção de dados, ou seja, o ‘bode expiatório’, como se este pudesse agir em ‘roda livre’, à revelia do seu conhecimento. 

Se não fosse esta ‘contrariedade’, Medina acharia que a reeleição eram ‘favas contadas’. Agora, talvez deite ‘contas à vida’. 

A seu favor, está o facto de, em Portugal, as indignações terem ‘perna curta’. Viu-se o que aconteceu perante a remoção de gente incómoda, desde a PGR ao Tribunal de Contas. Ou, mesmo, com a substituição obscena do governador do Banco de Portugal por Mário Centeno, transitando diretamente do Ministério das Finanças.

A captura do Estado pelo Governo socialista tem-se mostrado exuberante. A sua ‘sem cerimónia’ acentua-se a cada passo, em nomeações para a administração pública que ‘bandarilham’ a CRESAP, ou na indicação de comissários políticos para presidir à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, e para responsável executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

Se Ana Paula Vitorino não teve o menor pejo em aceitar a nomeação para um órgão regulador, dito independente, já Pedro Adão e Silva julgou-se habilitado, para comissariar o cinquentenário da Revolução, tendo como currículo ser comentador polivalente, capaz de falar com a mesma desenvoltura de política ou de futebol. 

Um surfista vocacional, a quem vão pagar uma estrutura sumptuária, durante um tempo desmesurado, para dar corpo a uma efeméride, que se cumprirá em 25 de Abril de 2024. É mais um ‘boy’ à conta do contribuinte. 
Ramalho Eanes, que aceitara antes o convite de Marcelo Rebelo de Sousa para presidir à comissão de honra dos festejos, não se inibiu de avisar que «para que uma organização funcione, é necessário que não se criem situações de facto consumado». E garantiu que avaliará «se não há sinergias onerosas» na estrutura criada por António Costa.

Saltam já à vista…

A escolha de Adão e Silva é tão partidária como controversa e premeia um discípulo de Sócrates e de Ferro Rodrigues, sem nada no seu percurso, académico ou profissional, que o recomende para o lugar, além de ter nascido em 1974, o que é curto…

Houvesse independência de espírito, e não faltariam boas alternativas, mesmo na área socialista, com outros pergaminhos. António Barreto ou Mário Mesquita, por exemplo. 

E tudo isto acontece no meio da passividade presidencial, e de uma oposição abúlica, tanto à esquerda como à direita. 

Por estas e por outras é que a abstenção tem progredido, tal como a tendência para aceitar soluções autoritárias. Somos um barco à deriva…

Nota em rodapé:  Será coerente com uma resolução do Conselho de Ministros, que remete novamente o pais para a zona vermelha da matriz de risco em contágio de covid, o apelo de Eduardo Ferro Rodrigues para que os portugueses «se desloquem de forma massiva para o sul de Espanha» para assistir ao jogo da seleção nacional contra a Bélgica? Será defensável que os Presidentes da República e da Assembleia da República achem curial, perante o quadro pandémico agravado, impondo novas restrições de circulação aos portugueses, decidirem rumar a Sevilha para presenciar um jogo dos oitavos de final do torneio europeu?  Será este o exemplo de recato que as duas primeiras figuras do Estado dão ao país, ao curvarem-se e prestarem vénias ao futebol? Quem disputará, afinal, o melhor lugar na tabela do populismo?…