Acabou-se a bola. E agora?

Se o governo oferecesse vales de desconto em produtos culturais, hotelaria e turismo, ou sorteasse semanas de férias cá dentro entre quem se vacinasse, estaria a ajudar os setores cultural e turístico, que tanto precisam, e a contribuir para o bem coletivo maior que é aumentar a taxa de vacinação.

por Sofia Aureliano

Agora que a anestesia do Europeu terminou, os portugueses deixaram de ter um foco de distração, as ações e omissões do governo deixam de passar tão facilmente entre os pingos da chuva. E ainda bem, porque são inquietantes.

1.Certificado Digital COVID. O PSD requereu desde que o documento está ativo e parece que agora alguém ouviu e vai corrigir o problema que vou descrever, que não é de resolução complexa. As pessoas que tenham sido infetadas com Covid e que, por decisão da DGS, só levam uma dose de vacina, estão a ficar registadas no certificado digital com indicação de vacinação incompleta, ou seja, 1 em 2 doses. Sendo que a 2ª dose nunca chegarão a levar. A Comissão Europeia definiu em abril que os países devem considerar que, nestas situações, os cidadãos devem ter certificado com “vacinação completa”. Só assim têm acesso pleno a tudo o que o Certificado permitirá aceder. Entre o "vai ser resolvido" e o "já se resolveu", há 863 mil potenciais prejudicados. Porque é que se leva tanto tempo a resolver um problema básico que se trata com dois cliques? Será que o obstáculo não é informático, mas sim de falta de cruzamento de dados? Em Portugal, sabe-se quem são os infetados que já foram vacinados com uma dose cujo certificado tem de ser corrigido?

2. Testagem gratuita. Enquanto existir uma obrigatoriedade de apresentação do Certificado Digital COVID para qualquer tipo de acesso, e não sendo a vacinação obrigatória nem estando ainda acessível a todos os públicos, o facto de não se garantir testagem gratuita aos cidadãos é um factor discriminatório e promotor de desigualdade social. Os cidadãos não são obrigados a ter de suportar os custos de testagem para terem acesso ao direito de livre circulação. Se lhes é imposto, tem de lhes ser permitido fazer o teste gratuitamente. Até porque o facto de existirem autarquias que oferecem esses testes aos seus residentes faz com que a inação do governo permita manobras  de  propaganda política autárquica com um tema de saúde pública que é da exclusiva responsabilidade do poder central. Não pode haver espaço para mais chico-espertismos. Corrija-se esta injustiça rapidamente, que só promove a iniquidade entre cidadãos.

3. Nudging para a vacinação. A Grécia resolveu aplicar as ciências comportamentais para criar uma fórmula de incentivar os mais jovens a vacinar-se: oferecendo subsídios de 150 euros a quem se vacine. Em Portugal, esta medida não seria viável por várias razões, mas há formas de pôr o nudging ao serviço da mesma missão de estimular qualquer target para a vacinação. Por exemplo, se o governo oferecesse vales de desconto em produtos culturais, hotelaria e turismo, ou sorteasse semanas de férias cá dentro entre quem se vacinasse, estaria a ajudar os setores cultural e turístico, que tanto precisam, e a contribuir para o bem coletivo maior que é aumentar a taxa de vacinação. Uma estratégia win-win entre tantas outras que a task force do governo criada para este efeito certamente estará a preparar. Mas o tempo vale ouro. É preciso correr mais depressa do que o bicho.

4. Responsabilização. O ministro Eduardo Cabrita parece um jogador de paintball, batoteiro e impostor, que foi atingido dezenas de vezes, mas vai limpando o camuflado enquanto os colegas de equipa o encobrem e dizem que não morreu. Intrujão, mantém-se sempre em jogo, enquanto os adversários honestos vão saindo.

Há limites!

A cada crónica que escrevo sobre o ministro da Administração Interna acho sempre que, desta vez, se bateu efetivamente no fundo e que Costa não terá outro remédio senão deixar cair o amigo. Mas, qual num lamaçal fétido, vejo que é sempre possível chafurdar mais um bocadinho. Já suspeito que só podemos estar perante um caso de chantagem. Algum trunfo valiosíssimo, algum esqueleto no armário Cabrita deve ter do primeiro-ministro, para que ele o segure perante tanta falha, tanta negligência, tanta cobardia e falta de caráter. Esta semana, deixámos de ver só o incompetente ministro e vimos também o insensível ser humano que se esconde atrás de tecnicismos para ignorar o óbvio e virar as costas a quem dele tanto precisa. E não lhe custava nada, fosse em que modelo  fosse,  arranjar  uma forma de apoiar a família do trabalhador atropelado pelo carro da sua comitiva: morreu àquela família o pai, o marido, o irmão. O sustento de um agregado. Recebeu condolências e uma coroa de flores.

E a imputação da responsabilidade do acidente ao trabalhador, num comunicado glacial que sublinha a ausência de sinalização de trabalhos e a deslocação ad hoc do trabalhador na faixa de rodagem. Faltou informar, friamente também, a que velocidade circulava o carro de Cabrita na A6.

Foi aberto um inquérito. Talvez haja consequências… para o motorista. Ou talvez se repita o episódio de Ihor Homeniuk e nove meses depois a viúva receba uma indemnização. E um mal-amanhado pedido de  desculpas, quando a comunicação social fizer uma reportagem a demonstrar a miséria em que a família ficou a viver.

5. Neutralidade ou cobardia? Perante uma carta enviada à Comissão Europeia onde 14 países pedem para  que utilize “todos os instrumentos à sua disposição para garantir o pleno respeito do direito europeu“, perante uma lei húngara considerada “discriminatória para as pessoas LGBT”, Portugal recusa assinar a missiva pelo alegado dever de neutralidade que acha ser inerente à sua condição de atual presidente do Conselho da Europa.

Estamos, portanto, a dizer, que a identidade do país, aquilo que alegadamente o defende e o caracteriza, como a defesa dos direitos humanos, pode ficar suspenso e até ser anulado enquanto exercer funções europeia.

Felizmente, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, não concorda que representar os 27 estados-membros signifique a obrigatoriedade de não se manifestar e ter identidade própria e classificou como “vergonha” a lei húngara que Viktor Orbán chama de “propaganda gay”. Portugal não foi neutro. Portugal foi cobarde.

6.  Inconseguimentos sem consequências. O que Ferro Rodrigues fez no rescaldo do jogo de Portugal-França, apelando à deslocação massiva de portugueses a Sevilha, para apoiar a seleção nacional no jogo contra a Bélgica não foi uma reação “no calor do momento”, de cidadão patriota e entusiasmado, em pura felicidade que só quem ama o futebol compreende. Não foi um ato inocente. Foi uma ação ponderada e que Ferro Rodrigues, com a sobranceria que o caracteriza, fez questão de reiterar no dia seguinte, depois de certamente ter lido dezenas de comentários negativos sobre a sua atitude e exigências do imprescindível pedido de desculpas. Quem o conhece ou tenha estado atento aos seus movimentos nos últimos anos sabe que todas essas linhas foram lenha para a sua fogueira. Jamais Ferro Rodrigues voltaria atrás, pediria desculpa, ou faria qualquer empreendimento para enquadrar o seu descabido comentário numa conjuntura especial. Esse trabalho, tentaram-no fazer outros, como o próprio Presidente da República, por vergonha alheia ou tentando que não sobrasse para ele. Mas nem esse esforço Ferro Rodrigues considerou. Marimbou-se e, igual a si mesmo, intangível, reforçou a mensagem inicial para que não restassem dúvidas da sua real intenção.

Pedia-se mais à segunda figura do Estado. Sobretudo, exigia-se mais respeito pelos portugueses. E pediam-se consequências. O fim da impunidade. A responsabilização. O puxão de orelhas público. O derradeiro enterro de permissões de “vale tudo” e de atitudes de “intocáveis”.