A semântica e as nuances socialistas

«Não se trata de recolher obrigatório mas de limitação de circulação», precisou a ministra de Estado Mariana Vieira da Silva. Ou seja, os portugueses não estão obrigados a ficar em casa a partir das 23 horas, não podem é andar na rua. Percebem a diferença? Ninguém percebe, mas a ministra diz que há.

Em fevereiro passado, Augusto Santos Silva, em envelope e carta com timbre do Ministério dos Negócios Estrangeiros, invocando a lei de imprensa, enviou-me um direito de retificação em que em três linhas apenas afirmava: «Na sua edição de 6 de fevereiro p.p., “O Nascer do Sol” escreve: “Santos Silva já terá pedido a Costa para sair do Governo no final da presidência portuguesa da UE”. Ora, é falso que o tenha feito».

Como não podia deixar de ser, o direito de retificação foi publicado no Nascer do SOL imediatamente seguinte e com igual destaque de primeira página. Bem como foi destacado na edição online do Nascer do SOL.

Ora, a presidência portuguesa da União Europeia terminou no passado dia 30 de junho e Augusto Santo Silva não perdeu tempo: dois dias depois, é capa do Expresso e da revista deste semanário, afirmando em entrevista: «Espero que o PS me permita voltar à minha profissão». Na chamada de primeira página, o jornal escreve o mesmo que Augusto Santos Silva desmentiu ao Nascer do SOL em papel timbrado do MNE: «Admitiu sair no fim da presidência portuguesa da UE mas, com o Governo sob pressão, não é certo quando António Costa prescindirá dele».

Então? Em que ficamos?

É claro que Santos Silva pode sempre invocar que não terá pedido nada a Costa e que essa foi a informação que disse ser falsa e que, ao abrigo da lei de imprensa, exigiu ver retificada.

Mas as novas declarações de Augusto Santos Silva, agora, fechada a presidência portuguesa da UE, são exatamente a confirmação da informação que o Nascer do SOL deu aos seus leitores em fevereiro: Augusto Santos Silva, já então no primeiro lugar do pódio dos governantes com mais tempo em funções no Executivo pós-25 de Abril, tencionava deixar o Governo e regressar à sua atividade profissional (fora da política) a seguir à presidência portuguesa. Se é já ou daqui a uns tempinhos – como entretanto resolveu acrescentar na TSF – isso já depende do primeiro-ministro e não dele, claro.

Recorde-se também que, na última edição do Nascer do SOL, o presidente do PS, Carlos César, veio lembrar que este segundo Governo de António Costa foi estruturado a pensar na presidência da UE. Pelo que, finda esta, é mais do que natural que o primeiro-ministro entenda rever a orgânica do seu Executivo e proceder a ajustes.

Está tudo, portanto, bem entendido. Trata-se, na linguagem dos socialistas, de uma questão de semântica ou de nuances.

Vejamos outro exemplo que tem marcado a agenda mediática dos últimos dias: o acidente com o carro em que seguia o ministro Eduardo Cabrita e que atropelou mortalmente um trabalhador na A6.

As primeiras informações davam conta de que o carro em que seguia o ministro ter-se-ia despistado e colhido mortalmente um trabalhador. No dia seguinte, o Ministério apressou-se a desmentir que tivesse havido despiste, confirmando, porém, que a viatura colhera um trabalhador num local da autoestrada que não tinha sinalização de obras. Acontece que a Brisa veio mais tarde esclarecer que o trabalhador em causa procedia a trabalhos de manutenção das bermas (jardinagem) que estavam devidamente sinalizados. Quer isto dizer que, de facto, poderia não haver sinalização de obras – porque, pelos vistos, não havia obras nenhumas –, mas sim sinalização de que estavam em curso trabalhos de limpeza e manutenção das bermas, que é coisa diversa. Mas bem diferente é o Ministério da Administração Interna, neste triste caso, escudar-se em nuances como essa para tentar eximir-se das suas responsabilidades e não prestar todos os devidos esclarecimentos de uma vez por todas.

Vejamos ainda dois outros e igualmente atuais exemplos de como os governantes socialistas recorrem e usam a subtileza na comunicação para fazerem valer ou impor as suas regras.

O primeiro, a sujeição do primeiro-ministro a um confinamento preventivo por ter tido contacto com um membro do seu gabinete que testou positivo. Estando o primeiro-ministro vacinado, e já há tempo suficiente com as duas doses, as tentativas de justificação da Direção-Geral da Saúde são tudo menos inteligíveis. Simplesmente, não fazem sentido. Se fizessem, então o certificado digital é que não faria sentido algum. Alguém consegue explicar? Como não, vá de remeter para as normas e para a DGS e pronto, está explicado.

O segundo: o recolher obrigatório a partir das 23h para cerca de 4 milhões de portugueses. Lá voltam as questões de semântica ou das nuances socialistas. «Não se trata de recolher obrigatório mas de limitação de circulação», precisou a ministra de Estado Mariana Vieira da Silva. Ou seja, os portugueses não estão obrigados a ficar em casa a partir das 23 horas, não podem é andar na rua. Percebem a diferença? Ninguém percebe, mas a ministra diz que há.

Mas não há nada. O que é há é um recolher obrigatório que só pode ser determinado em estado de emergência. Mas, como já não há estado de emergência, o Governo chama-lhe simples limitação de circulação, a ver se passa.

E passa. Porque ninguém reage.

O povo é sereno e submisso e, com mais ou menos nuances, papa tudo. Até um dia!